sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

A Analítica do Poder no Anarquismo e em Foucault

     
                                                                                                                                                                   Ricardo Líper                                   
          
Resumo

Tanto os anarquistas como Foucault tiveram como objeto de pesquisa as consequências do poder na constituição do sujeito. Não examinaram o poder como resultado nem da economia nem de contratos sociais. O pesquisaram empiricamente sem metafísica, historicismo, idealismo, hegelianismo. Usaram o mesmo objeto e o mesmo método em suas pesquisas. E constataram que a dominação e exploração do homem pelo homem foram executadas pelo exercício do poder e só com o seu enfrentamento é possível uma libertação dos homens com a organização de uma sociedade plenamente democrática e libertária. Foucault centralizou suas pesquisas na constituição da subjetividade do sujeito resultado das relações entre verdade e poder e propôs a solução com a reedição do cuidado de si, na qual o sujeito, sendo o mestre de si mesmo, enfrenta o poder. E os anarquistas postularam eliminar o poder em todas as relações humanas pelas mesmas razões. Essas duas soluções, tanto dos anarquistas como de Foucault, somam-se devido à mesma metodologia na análise do mesmo objeto de pesquisa. Por isso a questão da dominação do sujeito pelas relações de poder é, antes de tudo, epistêmica. Quer dizer que a conclusão da análise do poder, na condição e constituição do sujeito, depende da maneira de como ele foi analisado sendo objeto de pesquisa e com qual metodologia.

Palavras-chaves: anarquismo, epistemologia, poder.

Abstract

The Analytics of Power in Anarchism and in Foucault's Thought

As anarchists as Foucault had the consequences of power in subject constitution as their research goal. They don't examine it as result of econmics nor social contract one. They research it empirically without methaphisics, historicism, idealism or hegelianism. They use the same object and the same method in both works. They find the domination and exploration of man by man was made by power and conclude that only with struggling against power would be possible the men's freedom with the social organisation fully democratic and libertary one. Foucault focused your researches on subject subjetivity constitution as resultant of relations between truth and power and he proposes as solution the reissue of self care, in which the subject, being the master of himself, faces the power. The anarchists postulated the elimination of power in all of human relations for the same reasons. These two solutions add due the same methodology in analysis of the same research goal. For this, the question of domination of subject by the relations of power is, before of all, an epistemic question. That is the conclusion of analysis of power, in subject condition and constitution, depends the way how it was analysed as research goal and with such methedology.

KEYWORDS: ANARCHISM, EPISTEMOLOGY, POWER






            A Questão Epistemológica

            O objeto de pesquisa, para os anarquistas e Foucault, foi a constituição do sujeito resultado do exercício das relações de poder.
            Recusaram suposições de que existiriam outras causas que fizeram surgir o poder.  O poder não foi examinado por eles como resultado da economia, do homem ser o lobo do homem, de contratos sociais ou legislações jurídicas. Rejeitaram qualquer tipo de metafísica, historicismo, idealismo, hegelianismo. Foram empiristas na sua metodologia. Analisaram o poder como ele se manifesta que são as estratégias e práticas de dominação e exploração do sujeito. E a partir dessa análise focaram ele pode enfrentá-lo para deixar de ser sujeito tornando-se o mestre de si mesmo.
             O que ocorreu foi um equívoco na análise do poder como objeto de pesquisa quando não se estudou como ele existe na sua prática. Substituíram a análise de como o poder existe, se manifesta e age por suposições metafísicas e a-históricas do que é o poder.
            É de suma importância evidenciar esse engano porque suas consequências foram grandes na dominação do homem pelo homem. É exatamente a partir desse mal-entendido, na análise do poder, que aqui vamos analisar suas consequências teóricas e políticas.
            Foucault assim descreveu sua pesquisa: “Não é, pois, o poder, mas o sujeito que constitui o tema geral de minhas pesquisas. É verdade que fui levado a interessar-me de perto pela questão do poder”. [1]
            Analisar as práticas do poder como um objeto de pesquisa sem ser resultado de outras causas aproxima os anarquistas com o pensamento de Foucault. O que os diferencia é que, em alguns momentos, examinam diferentes aspectos dessa mesma questão. Mas o essencial é que, tanto para Foucault como para os anarquistas, o exercício do poder é o fato central para explicar a sujeição na dominação do homem pelo homem. E, para ambos, a solução é excluí-lo em todas as suas formas e suas práticas. É isto que chamamos de anarquismo.   
                                                          
            O poder só existe onde e como exerce suas ações. Não tem uma causa porque ele é a causa e não o efeito. A dominação é a causa. Ela é uma prática. Ocorre por quem pode exercê-la pela força e ou nas estratégias de criar dispositivos [2] suficientes para dominar o próximo. Por isso os anarquistas recusaram todos os tipos de governos porque são exercidos para executar a dominação e exploração do sujeito.
            Foucault descobriu como a vontade de verdade através de seus discursos é uma dessas estratégias. Suas pesquisas do que é e como se exerce o poder, o levou a uma terminologia e conceitos próprios como discurso, episteme, sujeito. Quer dizer, como o discurso, resultado das epistemes [3] de cada época, se dizendo verdade absoluta, gerou o sujeito.
            Já os anarquistas chegaram à mesma conclusão, por outro caminho, que foi diagnosticar o autoritarismo disseminado na sociedade como a causa principal da sujeição. Sébastien Faure definiu assim o anarquismo: “Quem negar a autoridade e a combater é um anarquista”. São focos diferentes do mesmo objeto que mais se somam do que se eliminam.
            Em ambos a reação ao poder não é se tomar o poder porque o seu exercício do poder, seja por quem for o sob que razão, o obrigará a servi-lo senão não o está nem tomando nem o exercendo. Seja que pretexto for, ao se tomar o poder, tem de executá-lo senão o perde e, na maioria das vezes, o tem de exercer como uma ditadura. A história tem mostrado isso monotonamente.
            Para eliminar a dominação do homem pelo homem, tem de se substituir as relações de poder por relações humanas sem exercício de poder. Alterar a base que sustenta a superfície. É no resultado do poder no sujeito sujeitado que se dá o enfrentamento político. É nesse campo que primeiro se identifica onde ocorrem as relações de poder e as substitui por relações humanas sem o exercício do poder. Não é no atacado é no varejo que se age. Porque, neste caso é o varejo, a microfísica do poder, que forma o atacado.  Ou seja, eliminar o alicerce para o seu edifício ruir. E isto só foi possível porque o analisaram como a causa e não o efeito. O poder não é um epifenômeno, é o fenômeno. Ele se manifesta em rede formando uma malha que envolve toda a sociedade. Transita em todos nós para manter-se e existir. Se todos nós não nos tornarmos pequenos ditadores ele não consegue ser exercido porque não consegue circular em rede em toda a sociedade. Tanto nos anarquistas como em Foucault foi, no sujeito, o centro da análise na qual o poder se exerce. E só com sua recusa de exercer o poder se tornam preparados para enfrentá-lo modificando suas relações de poder em relações humanas sem exercício de poder.
             Foucault percebeu que sem uma transformação do sujeito não se podia acessar o conhecimento sem ser vítima do poder. Ele chegou a essa conclusão com a descoberta do cuidado de si ser eliminado no ato de conhecer e remeteu-se em A Hermenêutica do Sujeito e A Vontade de Verdade, aos estóicos e cínicos como um caminho para o enfrentamento do poder.
            Nas suas pesquisas históricas das relações de poder, descobriu que tinha ocorrido uma alteração epistemológica de como se acessava a verdade desde o início da filosofia. Na Grécia antiga o cuidado de si subordinava o conhece-te a ti mesmo. Isso quer dizer que, antes do ato de conhecer o homem tinha como pré-requisito, o cuidado de si, que significa um treinamento para a defesa do que é o humano, como a meta fundamental da sua liberdade e, portanto, subordinava o conhece-te a ti mesmo no ato de conhecer. O conhece-te a ti mesmo foi, nesse contexto, direcionado para ser um método para se acessar o conhecimento.
                Mas o cuidado de si, como acontecia na Grécia antiga, foi eliminado no que Foucault chamou de momento cartesiano. Descartes, no seu método a partir da sua máxima, penso logo existo, eliminou o cuidado de si no ato de conhecer. Depois Foucault disse que usou o nome de Descartes, mas não necessariamente o estava colocando como o vilão da história. O mais importante foi diagnosticar o momento que ocorreu no racionalismo que depois se desenvolveu no iluminismo e permitiu cada vez mais, uma cisão da razão na eliminação do homem como ser humano no ato de conhecer. O mais importante era mostrar esse momento ele o chamou, de uma forma de geral como quase uma brincadeira, de cartesiano.     

Para começar, consideremos a situação, se quisermos, na direção ascendente. O corte não se fez bem assim. Não se fez no dia em que Descartes colocou a regra da evidência ou descobriu o cogito, etc. Havia muito tempo já se iniciara o trabalho para desconectar o princípio de um acesso à verdade unicamente nos termos do sujeito cognoscente e, por outro lado, a necessidade espiritual de um trabalho do sujeito sobre si mesmo, transformando-se e esperando da verdade sua iluminação e sua transfiguração. Havia muito tempo que a dissociação começara a fazer-se e que um certo marco fora cravado entre esses dois elementos. E esse marco, bem entendido, deve ser buscado... do lado da ciência? De modo algum. Deve-se buscá-lo do lado da teologia. A teologia (essa teologia que, justamente, pode fundar-se em Aristóteles [...] e que, com Santo Tomás, a escolástica, etc., ocupará, na reflexão ocidental, o lugar que conhecemos), ao adotar como reflexão racional fundante, a partir do cristianismo, é claro, uma fé cuja vocação é universal, fundava, ao mesmo tempo, o principio de um sujeito cognoscente em geral, sujeito cognoscente que encontrava em Deus, a um tempo, seu modelo, seu ponto de realização absoluto, seu mais alto grau de perfeição, e simultaneamente, seu Criador, assim como, por consequência, seu modelo. A correspondência entre um Deus que tudo conhece e sujeitos capazes de conhecer, sob o amparo da fé é claro, constitui sem duvida um dos principais elementos que fazem [fizeram] com que o pensamento ou as principais formas de reflexão – ocidental e, em particular, o pensamento filosófico se tenha desprendido, liberado, separado das condições de espiritualidade que os haviam acompanhado até então, e cuja formulação mais geral era o princípio da epiméleia heautoû. (FOUCAULT escreveu em A Hermenêutica do Sujeito, publicada em São Paulo pela editora Martins Fontes em 2011 na página 26).

            Embora até agora tenhamos mostrado como Foucault recusou o racionalismo de Descartes, essa afirmação, nesse excerto, é que estabelece como o cuidado de si foi eliminado, a partir daí, de como se acessa a verdade.                                                   
            Ou seja, não se podia substituir o que é humano pelo raciocínio e, talvez até pela matemática e taxonomia, no sujeito cognoscente, sem perder sua humanidade e liberdade.
            Se o penso logo existo foi privilegiado como fundamento de como será gerado o conhecimento, foi criado um método em que tudo pode ser analisado e explicado nos exercícios da razão, ou seja, na consciência sem o corpo ou nada que seja humano além da razão. E a consequência é que qualquer um, sem outro requisito desde que não seja louco, seguindo esse método pode acessar o conhecimento. O humano foi substituído por uma parte do que é ser humano que é o raciocínio, mas sem ele.  Eliminou-se o humano no ato de conhecer. Quer dizer, no momento cartesiando, se eliminou, epistemológica e politicamente, o próprio homem o reduzindo o ser uma consciência aprisionada em um racionalismo. Porque o humano é que está implícito no cuidado de si quando foi criado pelos espartanos.
O cuidado de si, como está descrito no Primeiro Alcíbiades de Platão, surgiu quando um espartano, ao ser perguntado por que eles não cultivavam suas terras as deixando esse encargo para os hilotas, respondeu que precisavam cuidar de si.
Para melhor entender esse desdobramento entre ética e epistemologia, temos de começar quando Foucault então fez uma ressalva: o cuidado de si não foi uma premissa inicialmente filosófica.

Primeiro se é verdade que é com Sócrates, e em particular no texto Alcibíades, que assistimos à emergência do cuidado de si na reflexão filosófica, não devemos contudo esquecer que o principio ‘ocupar-se consigo’ – como regra, como imperativo, imperativo positivo do qual muito se espera – não foi, desde a origem e ao longo de toda a cultura grega, uma recomendação para filósofos, uma interpelação que um filósofo dirigia aos jovens que passam pela rua. Não foi uma atitude intelectual, nem um conselho dado por velhos sábios a alguns jovens demasiado apressados. Não, a afirmação, o princípio ‘é preciso ocupar-se consigo mesmo’ era uma antiga sentença da cultura grega. Uma sentença, em particular, lacedemônia. Em um texto, aliás tardio pois é de Plutarco, referente porém a uma manifestamente ancestral e plurissecular, Plutarco retoma uma palavra que teria sido de Alexândrides, um lacedemônio, um espartano, a quem um dia se teria perguntado: mas afinal, vós, espartanos, sois um tanto estranhos; tendes muitas terras e vossos territórios são imensos ou, pelo menos muito importantes; por que não os cultivais vós mesmos, por que os confiais a hilotas? E Alexândrides teria respondido: simplesmente para podermos nos ocupar com nós mesmos. (FOUCAULT escreveu em A Hermenêutica do Sujeito, publicada em São Paulo pela editora Martins Fontes em 2011 na página 30).

            O cuidado de si foi uma transformação inicialmente física que se originou em um treinamento militar para os espartanos não serem dominados e escravizados por outros povos. Teve uma origem militar. Mas depois se tornou principalmente cognoscente e subjetiva e mais tarde ampliado, epistemológica e politicamente com os estóicos e cínicos, para todos não serem escravos não só dos outros mas, principalmente, não serem escravos de si mesmos.

Já que, para os gregos, liberdade significa não-escravidão – o que é, de qualquer forma, uma definição de liberdade muito diferente da nossa -, considero que o problema já é inteiramente político. Ele é político uma vez que a não-escravidão em relação aos outros é uma condição: um escravo não tem ética. A liberdade é, portanto, em si mesmo política. Além disso, ela também tem um modelo político, uma vez que ser livre significa não ser escravo de si mesmo nem de seus apetites, o que implica estabelecer consigo mesmo certa relação de domínio, de controle, chamada de arché – poder, comando. (FOUCAULT em uma entrevista A ética do cuidado de si como prática da liberdade publicada em Michel Foucault Ditos e Escritos V   Forence Universitária no Rio de janeiro em 2006 na página 270).

            Quer dizer, no momento cartesiando, se eliminou, epistemológica e politicamente, o próprio homem o reduzindo o ser uma consciência aprisionada em um racionalismo. É esse equívoco que depois vai ser desenvolvido também pela fenomenologia de Husserl. E nesta razão cindida, devido ao acesso equivocado do saber ao eliminar o cuidado de si, que era o humano no ato de conhecer, suas verdades vêm das coisas e se exerce sobre eles.  É então que a vontade do saber se associa a vontade de poder. Um saber que se imagina dominando as coisas é dominado por quem o exerce. Algo semelhante ao poema de Goethe sobre o aprendiz de feiticeiro que desencadeou uma força na qual ele sucumbe nela como ocorreu com a bomba atômica e outras atrocidades efetuadas pelo exercício do poder com a eliminação do cuidado de si no ato de conhecer. E que também foi ilustrado por Mary Shelley, no seu romance, Frankenstein.
            Mas o mais grave foi que o sujeito inicialmente fica escravo das coisas que pesquisa em uma aparente liberdade epistemológica e dos homens nomeados como cientistas seus gestores. Mas depois o sujeito cognoscente pode ser e foi objeto de si mesmo com o surgimento das ciências humanas. Ele passou a ser analisado como uma coisa e, portanto, as dominações das coisas se estenderam a dominação, pelo saber, do sujeito ao se tornar um duplo empírico transcendental.
            O que se requisita portanto, tanto nos anarquistas com em Foucault, é a reedição do cuidado de si como enfrentamento do poder. Os anarquistas podem chamar o  cuidado de si, que é sinônimo de  exercício de liberdade sem o domínio do governo e sem Estado, de anarquismo. 
            Portanto o cuidado de si em Foucault não é só epistêmico é também político e revolucionário. E podemos dizer até que o cuidado de si é epistêmico, político, revolucionário e anarquista.
              Quando Foucault estudou, primeiro aos estóicos e depois os cínicos, nos seus dois últimos cursos ministrados no College de France, se assemelha às reflexões de Han Hyner [4] sobre a importância dos estóicos para os anarquistas. Em Foucault a reedição do cuidado de si insere o homem em uma ética na qual o humano prevalece nele como o mestre de si para não ser escravo dos outros nem de si mesmo e, assim criar, sem universais, sua ética e estética da existência.
            Horkheimer publicou em 1937 Teoria Tradicional e Teoria Crítica e mostrou que a teoria tradicional, relacionada com pensamento de Descartes, excluía o social e postulou a solução com o que chamou de Teoria Crítica na qual inseria o social, ou seja, o homem.
            Nietzsche, nas suas reflexões sobre o Apolíneo e o Dionisíaco na sua Origem da Tragédia também pode ser lida, como uma cisão da razão semelhante à eliminação do cuidado de si do conhece-te a ti mesmo.

                                   
            As  Consequências 

            Ser contra a todas as formas de dominação do sujeito pelos exercícios de poder tornou-se uma teoria chamada anarquismo, que foi, e está cada vez mais, se alastrando nas sociedades.
            Um número cada vez maior de pessoas recusa as autoridades, se tornam mestres de si mesmas e se associam entre si, em relações humanas sem o exercício de poder, para mudar aquilo que lhes indigna. E então, gradativamente, essas micro-ações diretas, vão eliminando os micropoderes e termina organizando a sociedade sem exercícios de poder. Essa é que é uma real revolução e não novas dominações com o nome de revoluções.
            Os anarquistas efetuam, no aqui e agora, várias experiências para se estabelecer relações humanas sem exercício de poder. Essas experiências são as práticas, em uma espécie de laboratório, de sua ciência política. Sua ação tem dois aspectos que se combinam: a crítica a qualquer tipo de exercício de poder do homem pelo homem e experiências de relações sem exercício de poder em heterotopias anarquistas. Eles executam, em seus pequenos espaços e na sua relação diária com os outros, já uma revolução. Eles expulsam de si qualquer tipo de autoritarismo e se transformam assim em anarquistas na teoria e na prática. Criam cada vez mais novas formas de ser e viver sem exercícios de poder nas escolas, nas famílias, nas relações amorosas e em todas as relações humanas.  Criam e apoiam todas a libertações do sujeição que lutam todas as formas de sujeição.
             Os que querem tomar ou participar do poder não fazem essa transformação pessoal como os anarquistas e nem criam heterotopias ou experiências de relações sem poder. Eles visam manter o poder do Estado e do governo como são e não abrem mão de nenhum poder pessoal em sua vida, teoria e pensamentos.
             Os anarquistas trazem no corpo e nas suas ações a revolução, se possível, em todos locais, em todas as horas e todos os dias E, ao mesmo tempo, lutam para disseminar, pacificamente, em toda sociedade o seu exemplo e sua teoria. Daí os temas recorrentes no anarquismo de autogestão, horizontalidade de organizações substituindo verticalidades, ação direta etc. E cada vez mais pessoas aderem e assim se tem mudado o mundo. Daí tem surgindo, cada vez mais, lutas setorizadas sem partidos e sem governos.
            Partidos e governos são levados a reboque, porque, na sua única necessidade de   manter  e  se conservarem no poder, cedem.
                Os partidos foram resultados de uma estratégia das relações de poder no que foi chamado de democracia. Todos eles se organizam para tomar o poder. Criam suas propostas para atrair, os que acreditarem nelas, para os elegerem nos jogos de poder chamados de democracia. Nasceram para limitar as lutas sociais violentas em uma arena política criada por quem domina no poder. Imposta essa regra  todos visam tomar uma pequena ou grande fatia do governo ou ficar tentando a cada eleição.
             Comem as migalhas, às vezes suculentas, mas migalhas se comparadas com o banquete de quem domina todos e exerce o governo. Eles se elegem como se auto determina que é ser o intermediário profissional entre o povo e o poder. Procuram tomar todas as ações populares de libertação para ele.  Eles se impõem, com várias artimanhas, para se apossar dos movimentos sociais e, dizendo que os está liderando e tomar para si o poder, e uma vez no poder, encerra sua função. Por isso, seja qual for suas propostas, elas nascem mortas porque vão, de acordo em acordo com forças maiores que a deles em benefício próprio, fazendo o jogo do poder e assim neutraliza tudo que pode mudar a realidade, no aqui e agora, para se manter sempre no poder. Só cede quando o povo já conquistou o que postulava e aí vai a reboque. E o povo já percebeu que a maioria do que eles o dizem que vão fazer jamais fazem. Se eles não comprarem quem vai votar neles, sugerindo que vão lhes empregar e proporcionar privilégios, não se elegem. Quando eles fazem alguma coisa a favor de uma maior liberdade é sob a pressão das ações de grande parte da população, sem partido e sem poder, que ele não pôde dominar, se apropriar e neutralizar. Foram obrigados a ceder.
            Quem podia imaginar que partidos burgueses, socialistas e comunistas iriam colocar nas suas agendas e nos seus cartazes um negro, uma mulher e uma pessoa que ama pessoas do mesmo sexo? Todos esses partidos foram sempre contra a liberdade das mulheres, das relações sexuais livres, da luta contra o racismo. Não davam muita ênfase, mesmos os socialistas, as lutas raciais porque tinham as viseiras que era a economia que explicava o poder. Devido a essa curiosa e equivocada maneira de pensar só viam tudo como luta de classes. Logo negros, mulheres, crianças, loucos, pacientes de médicos, prisioneiros não eram vistos em sua cegueira política e só era  focado no operariado. Fora disto não existia sujeição porque eram politicamente reduzidos a manipulação dos operários ignorando e assim apoiando como pensava a população de acordo com os discursos e comportamentos de dominação impostos pela Igreja Católica e pela burguesia. Daí não iriam lutar a favor dos párias da sociedade que eles mesmos não aceitavam os seus comportamentos e muitos menos contrariar os operários que muitas vezes dominavam suas mulheres, filhos, e também absorviam uma moral sexual da sociedade burguesa. Nunca contestaram nem a mentalidade burguesa e pequeno burguesa nem a domínio moral e comportamental da Igreja Católica ou qualquer religião vigente. Não perceberam que também os operários são resultado de relações de poder porque sem se ter poder  não se tem nem escravos nem operários.
             Por isso que a ação anarquista tem mostrado que é mais eficiente em mudar, no aqui e agora, a sujeição do sujeito libertando milhões de pessoas de grandes sofrimentos. Enquanto isso os que se abrigam nos partidos fazem sua carreira de político profissional, muito comportadamente, para exercer o poder para ganhar e amealhar capital.
            Estamos vendo, gradativamente, o desaparecimento do poder sendo substituído por organizações sem relações de poder. Já ocorreu com a libertação das mulheres e sua igualdade com os homens, das vítimas do racismo, a abolição da palmatória e dos castigos dos alunos nas escolas e outras vitórias contra os poderes que vão perdendo terrenos, com a prática libertária de eliminar o poder cortando os seus tentáculos. Ou seja o expulsando dos corpos e dos locais onde eram exercidos. Criando alternativas a comportamentos, áreas e instituições sem exercício de poder.

       Proporei, como ponto de partida, tomar uma série de oposições que se desenvolveram nesses últimos anos: a oposição ao poder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre seus filhos, da psiquiatria sob os doentes mentais, da medicina sobre a população, da administração sobre a maneira como as pessoas vivem.
       Não basta dizer que essas oposições são lutas contra a autoridade; deve-se tentar definir mais precisamente o que elas têm em comum. (...) São lutas anárquicas. (Foucault em O sujeito e o Poder, publicado em Michel Foucault Ditos e Escritos IX pela editora Forense Universitária no Rio de Janeiro em 2014 nas páginas 121, 122).


            Gradativamente muitos, e não só os anarquistas, perceberam que o poder consome totalmente, em todos os detalhes, o corpo e a mente das pessoas na quais ele se exerce. Interfere e domina porque dita todas as suas ações: como se veste, fala, anda, pensa, pinta ou não o seu corpo. O poder possui o homem em corpo e alma. A alma é sua subjetividade que, nesse sentido, é a prisão do corpo. Não é só a força de trabalho que é explorada pelo exercício das relações do poder no corpo, mas todos os gestos e expressões corporais no que Foucault chamou de anatopolítica e depois acrescentou biopoder no curso Nascimento da biopolitica que ministrou no Collège de France em 1979.
            Em uma palestra, que foi ministrada em Salvador na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, que foi primeiramente traduzida e publicada em português pela revista anarquista Barbárie em 1981, Foucault diagnosticou que a dominação das relações sexuais é resultado da biopolítica:

        A vida entra no domínio do poder: mutação capital, uma das mais importantes, sem dúvida, na história das sociedades humanas. É evidente que se pode ver como o sexo pôde se tornar, a partir desse momento, quer dizer, a partir justamente do século XVIII, um peça absolutamente capital, pois, no fundo, o sexo é muito exatamente situado no ponto de articulação entre as disciplinas individuais do corpo e as regulações da população. (...) De outro lado, porém, o sexo é que garante a reprodução das populações. É com o sexo, com a política do sexo que podemos mudar a relação entre natalidade e mortalidade. De todo modo, a política da vida, que se tornou tão importante no século XIX. O sexo é o gonzo entre a anatomopolítica e a biopolítica, este está na encruzilhada das disciplinas e regulações. E é nessa função política de primeira importância para fazer da sociedade uma máquina de produção. (Foucault em As malhas do Poder, em Michel Foucault Ditos e Escritos VIII, publicado pela editora Forense Universitária, no Rio de Janeiro em 2012 nas páginas 180,181).

            Os anarquistas e Foucault perceberam que também os prazeres do corpo nada têm a ver com o sexo, é uma relação política de dominação no exercício do poder que incluiu os prazeres sexuais.  Na biopolítica a dominação é executada na capacidade humana de se reproduzir e assim expropriou os prazeres sexuais de sua liberdade e os vinculou aos interesses do poder na exploração dos corpos também através de fabricação dos seres humanos. Que, em grande parte, deveriam ser criados, pelos pais obrigados pela força das leis, para serem, principalmente, soldados, operários e camponeses. Um exercício do biopoder, não mais só a dominação individual anatomopolítica, mas da espécie no controle absoluto de sua reprodução, saúde e vida. Assim sendo o poder se exerceu também como o sujeito utiliza o seu próprio pênis e o seu sêmen. 
            Essa invasão estatal, policial e política nos prazeres eróticos foram vencidas pelos anarquistas com o uso apenas de duas palavras: amor livre.[5] Ou seja, a única relação sexual sem exercício de poder é o amor livre. Se os prazeres sexuais são consensuais entre pessoas adultas nada pode interferir, nem o Estado, leis, psicologias ou psiquiatrias, genética ou endocrinologia, religiões, ou seja, que discursos existam para dominá-los.        
            A história tem mostrado que essa ação direta tem sido a mais eficiente para se chegar a uma democracia plena e um socialismo libertário. Pode parecer estranha inicialmente, por ser muito diferente de tomar o poder para exercê-lo. Não é fácil expulsar o fascismo, ou seja, uma suposta necessidade do poder em todas as estâncias da vida, porque ele transita em nosso corpo em rede e só se pode mudar a dominação de si e dos outros quando bloqueamos a passagem do poder pelo nosso corpo, subjetividade e ações, ou seja, nos tornamos anarquistas.
             







[1] O Sujeito e o Poder, em Michel Foucault Ditos e Escritos IX, editado pela Editora Forence Universitária no Rio de Janeiro em 2014, na página 119. Sujeito, para Foucault, é o sujeito sujeitado.

[2] Inicialmente Foucault focou sua descoberta no discurso, resultado da episteme de cada época, e sua relação com o poder. O discurso é o que é dito. Entretanto existe o não dito, ou seja, o dispositivo: “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos”. Sobre a História da Sexualidade entrevista que Foucault deu Alain Grosrichard traduzida e publicada em Microfisica do Poder de Roberto Machado que foi editado pela editora Graal, Rio de Janeiro em 1978, sexta edição, na página 243.
[3] São relações recorrentes que aparecem nos discursos, não percebidos por quem os enuncia, como se fossem hábitos de pensar. Portanto podem ser também descritos como um a priori histórico vigentes em cada época. Ele as analisou no Renascimento, Idade Clássica e Modernidade em As Palavras e as Coisas publicado em 1966.
[4] No livro de Han Hyner Manual Filosófico do Individualista publicado no Brasil pela Editora Germinal do Rio de Janeiro em 1966.

[5] Postularam isto ainda no século XIX  de forma pioneira nos meios operários sem temer enfrentar a moral sexual dominante entre eles imposta pela burguesia.