Ricardo Líper
Este manifesto se
resume em um postulado: quando você não estabelece relações de poder e, ao
contrário, tem sempre relações humanas sem o exercício de poder você está
mudando o mundo. Se muitos agirem como você muda-se o governo e o Estado, a
exploração e tudo que nos indignamos. E
todos nós seremos muito felizes. Por seu exemplo e com sua crítica constante das relações de
poder tudo será mudado. Ser libertário é
a prática diária de relações humanas sem exercício de poder.
O que esse manifesto vai detalhar é exatamente mudar as
relações de poder para relações humanas sem relações de poder em todas as
instâncias. Pesquisar, experimentar e criar organizações de relações sem
exercício de poder desde as famílias, escolas, o amor, o trabalho, o
conhecimento e todas as relações humanas. É uma nova maneira de se mudar o
mundo. De baixo para cima e não de cima para baixo: mudando a microfísica do
poder para a microfísica sem o exercício de poder. E é ai que o pensamento
libertário se encontra com o pensamento de Foucault. Foucault foi libertário. Ser libertário é ser livre e facilitar para que todos sejam livres. É o
oposto do dominador cuja liberdade é apenas a dele. É uma nova forma de se
fazer política. Com que outro nome se
diga, é mudar o mundo no aqui e agora, sem utopia nem profecia, pacificamente,
mudando opiniões para mudar mentalidades. E, além da sistemática e constante, a
crítica a dominação e os dominadores e com sua ação libertária pessoal no
cotidiano. Quem tem razão não precisa ser violento. Ao contrário, a ideia que é
eficiente, vencerá exatamente por não ser violenta nem criminosa. Deixemos isso
para os dominadores. Bater, explodir, espancar, proibir, aprisionar, executar e
fazer chorar é com eles. E ninguém gosta disso e é por isso que os libertários
vencem por essa obviedade de sua teoria: nada impor. E assim suas práticas são vitoriosas
porque tem provado, em todos os lugares do mundo, principalmente nos mais
organizados, ser a mais eficiente nada impondo nas famílias, nas escolas, no
fim da censura de artes e pensamentos etc. Se você observar, em quase todo
mundo, o número de libertários é muito grande e aumenta a cada instante. Cada
vez mais surgem libertários em todos os lugares e sob vários nomes e movimentos
sociais.
A
Teoria
1 – Unir o anarquismo e o pensamento de Foucault
Este manifesto não visa dizer que
Foucault foi anarquista. Ele ter sido ou não anarquista é irrelevante.
Entretanto, muitos estudiosos, tanto do anarquismo como de Foucault, especulam
sobre a relação entre o pensamento de Foucault e o anarquismo. Mas não se
precisa obrigar Foucault a ser anarquista. O pensamento de Foucault é uma caixa
de ferramentas importante para os anarquistas. Acrescentar suas reflexões ao
anarquismo pode servir para os anarquistas utilizarem o que Foucault
desenvolveu em suas pesquisas e descobertas. O meu objetivo, portanto, é unir o
pensamento dos anarquistas com o de Foucault.
A finalidade de unir o pensamento de
Foucault com o anarquismo é pelo potencial dos dois de mostrar que, mudando a
si mesmo, pode-se mudar o mundo com todos e para todos. Os anarquistas estudam
muitos problemas sociais, morais e políticos, que Foucault também analisou,
cujo principal é o poder e a sujeição do
sujeito através da sua objetivação e subjetivação e como escapar dessa
dominação. E ambos chegaram, cada um com focos diferentes, às mesmas conclusões
e sugestões de práticas libertárias para se enfrentar o poder. A diferença
entre Foucault e os anarquistas é o foco na origem da dominação. Foucault fez suas
pesquisas sobre a dominação do sujeito na relação da verdade com o exercício do
poder. Daí a objetivação, subjetivação, individualização e totalização na
constituição do sujeito. E alguns anarquistas, que foram influenciados pelo
anarco-sindicalismo, se centralizaram nas lutas de classes. Entretanto, os
anarquistas individualistas, principalmente, dão ênfase à liberdade pessoal
como luta política.
Não está errado o
anarco-sindicalismo, mas não é só isso. Na realidade, as lutas de classes são
apenas um dos aspectos da questão de dominação do homem pelo homem. Primeiro
vem a dominação nas relações de poder
para se instalar a exploração e não o contrário ou, se quisermos, vêm sempre
juntas. O que une os anarquistas com o
pensamento de Foucault é a analítica do poder em ambos e como enfrentá-lo sem
se tornar um novo senhor.
A novidade de Foucault é que ele não
se contentou com o conceito de ideologia no modelo marxista de situar o
discurso falso de uma classe social burguesa, visando a exploração, em oposição
ao socialismo científico marxista, sendo este último verdadeiro. Foucault
colocou como a verdade, em grande parte, é associada ao exercício do poder. O
que ele chamou, em algum momento de suas reflexões, de saber-poder.
Foucault,
inicialmente, analisou o surgimento da verdade
como resultado de epistemes e discursos no que definiu como uma arqueologia, e o
que chamou de genealogia, que tratou da relação entre verdade e poder. E com
essa associação, chegou a diagnosticar como surgiu, na atualidade, o sujeito
dominado no processo de objetivação e subjetivação efetuado pelas verdades,
principalmente, das ciências humanas. Isto é, a dominação com o
aprisionamento do corpo pela heterodisciplina
e, principalmente, com a dominação na constituição da subjetividade do
sujeitado. Quer dizer, Foucault não se opôs ao tema anarquista principal, que é
a dominação do homem pelo homem pelo exercício do poder, muito pelo contrário,
procurou saídas para essa dominação e é isso que também sempre fizeram os
anarquistas. Aqui, baseado em ambos, se contrapõe a heterodisciplina, vinda de
outro para dominar o próximo, à autodisciplina, que vem de si mesmo. Para isto,
em Foucault, no cuidado de si e na
leitura dos estóicos, epicuristas e cínicos está a solução.
Foucault apenas analisou um outro
aspecto dessa dominação que foi o papel
da verdade-discurso na dominação e criação do sujeito nas relações de poder.
Não sei se Foucault não se associou aos anarquistas organizados de sua época
por estarem influenciados por conceitos como natureza humana, que seria
a-histórica, e o monismo da luta de classes com ênfase na economia política de
David Ricardo e Adam Smith que, recém criada, influenciou muito Marx. E, por
outro lado também, influenciou o anarco-sindicalismo. O anarquismo é não aceitar a dominação do homem pelo homem e por isso
se foca na abolição do poder em todas as suas instâncias. Mas esse
princípio se mesclou como outras teorias. O debate de Foucault com o anarquista
Chomsky pode ser uma evidência do que estou aqui especulando. Em minha opinião,
o pensamento de Foucault é mais anarquista do quê o de muitos anarquistas. Mas não sou dono nem do anarquismo nem de
Foucault, só faço propostas e tento praticá-las para ver se funcionam. O resto
são discursos e nada mais... Que, como a poeira, o vento e o tempo, levam...
Portanto
a relação do anarquismo com Foucault é que Foucault forneceu ao anarquismo um
instrumento útil com sua análise da sujeição e dominação na objetivação,
subjetivação, individualização e totalização do sujeito. Esses conceitos
estão colocados em O Sujeito e o Poder que ele escreveu em 1982, que
é um texto básico para a união entre o anarquismo e Foucault. No meu entender,
é o manifesto político de Foucault. Em toda sua obra ele fornece ao anarquismo
muitas análises de formas de dominação do sujeito. Essas análises são de imensa
importância para o anarquismo. Sua crítica ao liberalismo no seu curso do
Collège de France Nascimento da Biopolítica,
com o conceito de homo economicus e
de todas as estratégias de exercício de poder no liberalismo, é um diagnóstico
de suma importância para mostrar uma estratégia de dominação por trás da
suposta liberdade do liberalismo. A mesma coisa, e fundamental no seu
pensamento, foi mostrar o poder que cria e produz conhecimento. E é com o
conhecimento que também se manipula a dominação do sujeito.
Daí o enfrentamento agora é dotar o
sujeito de uma teoria de como escapar da sujeição e é isto que estamos aqui
sugerindo e colocando. Em Foucault foi a reedição do cuidado de si e entre os
anarquistas, também com outros nomes como anarco-individualismo, a mesma coisa.
Ou seja, mudar a si mesmo de uma mentalidade fascista para uma mentalidade
libertária na qual a questão central é não se deixar dominar nem dominar o
próximo.
Este
manifesto anarcofoucaultiano visa unir o pensamento dos anarquistas e de Foucault.
Porque, devidamente somados, incluir no anarquismo a reedição do cuidado de si,
como sugeriu Foucault, para enfrentar o poder. E assim mudar a si mesmo, com as
sugestões dadas pelos estóicos, epicuristas e cínicos, como foram lidos por
Foucault em A Hermenêutica do Sujeito e em Hyner no Manual
Filosófico do Individualista recusar e combater aquilo que nos indigna e
assim mudar o mundo.
E, assim sendo, elaborar uma prática
política e um estilo de vida, criando mestres de si mesmos e uma estética da
existência que tem, como consequência e a principal finalidade, mudar a si
mesmo para assim mudar as sociedades com práticas de uma vida não-fascista,
quer dizer, relações sem poder que neutralizam as relações de poder. E então,
mudar o Estado e o governo, eliminando deles as relações de poder. Portanto,
enfrentar e mudar o fascismo efetuado nas relações de poder nas sociedades em
que vivemos. Não se visa aqui reduzir o pensamento de Foucault ao anarquismo
nem o anarquismo ao pensamento de Foucault, mas sim somá-los.
Em um momento anterior a esse
manifesto eu diagnostiquei que o cuidado de si em Foucault era epistêmico.
Epistêmico porque no momento cartesiano, descrito por Foucault, surgiu uma
eliminação do cuidado de si no ato de conhecer que era a condição
epistemológica essencial para se conhecer entre os gregos antigos. Foucault
chamou de momento cartesiano quando se eliminou o cuidado de si que,
epistemologicamente significa inserir o humano no ato de conhecer. O cuidado de
si é a defesa da humanidade e de sua liberdade. E assim o conhecimento
eliminando o cuidado do si do ato de conhecer tira o humano do ato de conhecer
e o subjuga e destrói.
Como pensavam os gregos antigos,
como disse Sócrates no Primeiro
Alcibíades de Platão, segundo foi dito por Foucault, era de capital
importância a prática do cuidado de si que foi o que subordinava o conhece-te a
ti mesmo. Entretanto, Foucault mostrou em suas pesquisas históricas que a
eliminação do cuidado de si se iniciou com a teologia cristã. Ele usou o nome
momento cartesiano no qual se eliminou o cuidado de si do ato de conhecer por
Descartes para marcar o momento no qual se fundamentou o que já estava na teologia cristã que era a eliminação do
cuidado de si. Em Descartes cada um, sem o cuidado de si, bastaria usar o seu
método que se iniciou com o penso logo existo para acessar a verdade. Um
racionalismo no qual o que é humano deixou de ser o objetivo porque eliminado o cuidado de si, que é o que
se tem de vida e de humano no ato de
conhecer, portanto sua ética com a qual respeita a si, aos outros e a natureza e o planeta em que
vivemos. Ele é substituído por uma verdade que se origina na matemática que
destrói o homem, a natureza e o planeta em que habitamos. No método cartesiano,
ao eliminar o cuidado de si, privilegiando só o racionalismo sem o homem e a
vida, também gerou o iluminismo com essa mutação epistêmica. Fez o homem ser
escravo, nessa epistemologia, de como acessar o conhecimento e as coisas por
ele pesquisadas. E como resultado fez surgir uma espécie de ciência, descrita
com muita acuidade, por Mary Shelley em Frankenstein,
exercida por Mengele e na criação da bomba atômica entre outros resultados
semelhantes. Isso ocorreu porque sendo a-ético, sem levar em consideração o
humano, a vida e a natureza, porque se eliminou o cuidado de si no ato de
conhecer. E nesse, processo epistêmico, se elimina a liberdade do homem o
fazendo então escravo de suas descobertas e do conhecimento. Uma cisão da razão
que, eliminando o humano e o cuidado com a vida do homem e da natureza, criou
uma razão cindida entre o humano e a
razão. Como também, foi bem ilustrado por Goethe no seu poema O Aprendiz de Feiticeiro. O problema
epistemológico colocado por Foucault foi esse. Por isso que a sua solução
política e revolucionária foi reeditar,
como era praticado anterior ao pensamento da teologia cristã e depois de
Descartes, o cuidado de si.
De certa maneira podemos também ler
o Apolíneo e o Dionisíaco de Nietzsche sob esse ponto de vista. Horkheimer e Adorno fizeram a mesma análise
dessa cisão da razão com a
eliminação do cuidado de si, só que usando uma terminologia diferente como a
teoria tradicional na qual eles se referem a Descartes em
oposição com a teoria crítica que era baseada na filosofia marxista. Foucault
os elogiou, mas não aceitou sua solução influenciada pelo marxismo.
Ampliei esse fato para aqui colocar
que o cuidado de si é também político porque Foucault colocou sua reedição como
a solução para o sujeito sujeitado se libertar das relações de poder. E
revolucionário porque é assim que se enfrenta o poder para se mudar a realidade
social e política naquilo que nos indigna. Portanto
o cuidado de si, em Foucault, é epistêmico, político e revolucionário.
2 – Roteiro para iniciar o conhecimento do pensamento de Foucault.
Este é uma espécie de roteiro, que
costumo repetir, para facilitar inicialmente conhecer o pensamento de Foucault.
Foucault analisa o poder através do
sujeito. Principalmente na constituição da subjetividade do sujeito. Ele
decompõe o sujeito para identificar nele as ações do poder. Tudo se dá a partir
daí. E faz outro deslocamento para analisar o poder. Recusou o poder como sempre foi descrito como
existente em si e focou nas relações de poder que, através de estratégias,
constitui o sujeito. E a saída dessa condição de sujeito é a reedição do cuidado
de si que vai desenvolver no sujeito a capacidade de ser o mestre de si mesmo e
assim recusar toda sujeição através de sua subjetividade. O enfrentamento do
poder é eliminar a objetivação, subjetivação, individualização e totalização
para o sujeito deixar de ser sujeito. É essa a coluna vertebral do pensamento
de Foucault que sustenta todas as suas reflexões que giram em torno dessa
descoberta.
Primeiro: o objeto de pesquisa de
Foucault foram as relações entre verdade e poder na constituição do
sujeito. Em Foucault a palavra sujeito é o sujeito sujeitado.
Portanto, ele fez uma analítica da dominação do sujeito pela associação
da verdade com o poder. Em uma equação podemos dizer: Verdade +
Poder = o sujeito sujeitado.
Um dos textos básicos de Foucault é O Sujeito e o Poder, escrito
em 1982. Nesse texto ele resume grande parte de suas pesquisas e de seu
pensamento. Em O Sujeito e o Poder, publicado em Ditos
e Escritos IX , na edição brasileira pela editora Martins Fontes, em
2014, na página 119, Foucault escreveu:
Não é,
pois o poder, mas o sujeito que constitui o tema geral de minhas pesquisas.
É
verdade que fui levado a interessar-me de perto pela questão do poder.
Evidenciou-se-me logo que, se o sujeito humano está preso em relações de
produção e em relações de sentido, ele está também preso em relações de poder
de uma grande complexidade. Ora, acontece que dispomos, graças à história e à
teoria econômicas, de instrumentos adequados para estudar as relações de
produção; assim também, a linguística e a semiótica fornecem instrumentos ao
estudo das relações de sentido. Mas, quanto às relações de poder, não havia
nenhum instrumento definitivo; recorríamos a maneiras de pensar o poder se
apoiavam seja em modelos jurídicos (o que legitima o poder?), seja em modelos
institucionais (o que é o Estado?). Era, então, necessário ampliar as dimensões
de uma definição do poder, se quiséssemos utilizar essa definição para estudar
a objetivação do sujeito.
Em Ditos e Escritos V, na edição brasileira publicada
pela editora Martins Fontes, em 2006, na página 274, em uma entrevista A
ética do cuidado de si como prática da liberdade, em 20 de janeiro de
1984, para Concórdia, Revista internacional de filosofia nº 6, julho e dezembro de 1984, o entrevistador
perguntou:
(...) Em seus cursos no Collège de France, o senhor
havia falado das relações entre poder e saber; agora o senhor fala das relações
entre sujeito e verdade. Há uma complementaridade entre os dois pares de noções,
poder/saber e sujeito/verdade?
- Meu problema sempre foi, como dizia no início,
o das relações entre sujeito e verdade: como o sujeito entra em um certo jogo
de verdade.
No meu entender nessa entrevista ele encerrou o
assunto descrevendo o seu objeto de pesquisa durante toda sua vida.
Segundo: o seu método. O ponto de vista para Foucault analisar esse
seu objeto de pesquisa, verdade e poder na criação do sujeito nas relações de
poder, foi o empirismo. Por isso recusou pensar os acontecimentos históricos a
partir de universais, teleologias e filosofias trans-históricas e se deteve
apenas nos fatos singulares, isto é, acontecimentos e práticas. Assim ele
recusou o racionalismo, a metafísica, a fenomenologia, o existencialismo, o
marxismo, ou seja, Hegel, Marx, Sartre entre outros. E ele mesmo disse ser um
positivista feliz e Paul Veyne o chamou de empirista histórico, o que ele não
contestou.
Terceiro:
o resultado. Foucault lendo os documentos históricos descobriu que
existiam pressupostos recorrentes nesses documentos em cada época. Então ele
deslocou de focar o olhar em analisar o conteúdo das ideias nesses documentos,
que é o mais comum se fazer, para como essas idéias foram
geradas a partir desses pressupostos no ato de conhecer em cada época. E é
esse a priori que determina o que vai se falar, escrever e
pensar em cada época. Chamou esses pressupostos, que geravam o conhecimento,
de episteme e as idéias que eles geravam de discursos. Portanto,
esses pressupostos que geravam discursos foram chamados de a priori histórico. Essa
foi a revolução que Foucault fez na epistemologia e no conhecimento. Em vez de
fazer uma história das ideias, ele fez uma história desses pressupostos muitas
vezes não percebidos por serem considerados óbvios. E ele os isolou
em cada época e desfez suas obviedades porque os isolou e descreveu.
Foucault fez então, em vez de uma história das ideias, uma história das
epistemes no seu livro As Palavras e as Coisas.
Quarto: a consequência. Foucault,
e isso é o mais importante, analisou o discurso como práticas. O descreveu
como práticas discursivas e mostrou como essas práticas se
tornam uma estratégia em outro tipo de práticas no que ele chamou de relações
de poder. Quer dizer, analisou as práticas discursivas e suas
relações com as práticas de poder disseminadas em toda a
sociedade que ele chamou de relações de poder. Em outra
equação podemos colocar: práticas discursivas + práticas de poder =
relações de poder.
3 – O cuidado de si em
Foucault e o anarquismo.
O que queremos somando o pensamento
de Foucault com o anarquismo é colocar no anarquismo o conceito de relações de
poder. Quer dizer, como Foucault deslocou o poder de Estado e governo para o
exercício do poder disseminado em toda sociedade em relações de poder. Isso é
muito importante porque explica que o poder, como se tinha descrito até então,
não existe. O que existe é uma rede, na qual, todos participam do poder. Isso é
de grande importância porque mostra então como se pode se mudar o mundo sem
tomar o poder. Ou melhor, para se ser eficiente em enfrentar essa rede na qual
o poder atua é preciso se iniciar com o cuidado de si. E daí a transformação de
sua subjetividade sendo o mestre de si mesmo. A revolução é recusar o que você
foi até então. Ou seja, deixar de ser fascista.
Foucault tem três conclusões no
decorrer de suas pesquisas: a morte do homem, o poder não existe e a alma
prisão do corpo. O primeiro é a substituição do homem com sua consciência ser o
centro do conhecimento. Surgiu o estruturalismo, o inconsciente de Freud que
substituiu o cartesianismo e a fenomenologia. O poder não existe porque ele
atua em rede e a alma prisão do corpo é o cuidado de si ter sido eliminado do
conhecimento no momento cartesiano. Portanto, não é tomar o poder, porque o
poder não existe, segundo essa descoberta de Foucault. Mas mudar o que existe,
que são as microfísicas do poder. Ou seja, a rede, as malhas na qual o poder
atua, que é a base na qual se sustenta o poder centralizado do Estado e
governo. Na página 26 do livro do curso Em
Defesa da Sociedade, ministrado no dia 14 de janeiro de 1976, no Collège de
France, por Foucault, publicado no Brasil, em 2010, pela Martins Fontes, na
página 26 ele disse:
Terceira precaução do método: não tomar o poder como
um fenômeno de dominação maciço e homogêneo – dominação de um indivíduo sobre
os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras -; mas
ter bem em mente que o poder, exceto ao considerá-lo de muito alto e de muito
longe, não é algo que se partilhe entre aqueles que o têm e o detêm
exclusivamente e aqueles que não o têm e são submetidos a ele. O poder, acho
eu, deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor, como uma coisa
que só funciona em
cadeia. Jamais ele está localizado aqui e ali. Jamais está
entre as mãos de alguns, jamais é apossado como uma riqueza ou um bem. O poder
funciona. O poder se exerce em rede, e nessa rede, não só os indivíduos
circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também
de exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte e consentidor do poder, são sempre
seus intermediários. Em outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não
se aplica a eles.
Nas páginas 26 e 27 ele
diagnosticou: “Todos nós temos fascismo
na cabeça”; e, mais fundamental ainda: “todos nós temos o poder no corpo”. E o poder – pelo menos em certa medida – transita
ou transuma por nosso corpo.” (O grifo é meu).
Se você impedir que o poder transite
por seu corpo você inicia a modificação do poder. Corta as milhares de pequenas
veias que o alimentam e ele morrerá. É nesse ponto de vista que o poder não
existe como a dominação de pessoas sujeitadas e oprimidas, mas ele só o exerce
com o consentimento e ações fascistas de todos. Sem isso ele não pode ser
exercido, e pelo contrário, ele deixa de existir porque não existe como se
pensou que ele existia. Sem a maioria de seus súditos serem fascistas não é
possível o fascismo. Aliás, os anarquistas também já agem de certa maneira
assim. Como não acreditam em partidos nem em governos eles procuram
alternativas de vida e de militância para salvaguardar o seu princípio: sem
Deus e sem amos. O que Foucault fez foi, sob outro caminho, que começa com a
análise da constituição da verdade e do saber, mostrar como se o indivíduo se
modificar com o cuidado de si torna-se um revolucionário eficiente no
enfrentamento do poder, mais concretamente, na eliminação das relações de
poder. E estamos vendo acontecer no aqui e agora. Não mais supostos
revolucionários tomarem o poder e exercerem o seu fascismo prometendo fazer
mudanças que nunca farão.
Este manifesto visa mostrar em uma
filosofia e prática política anarcofoucaultiana o que já ocorre em todas as
sociedades contemporâneas libertando milhões de pessoas da sujeição. Com as
lutas específicas contra o racismo, o
desenvolvimento do feminismo, as liberdades de expressão corporais e
sexuais e a eliminação da censura de textos, fotos, arte etc. E também a
melhoria de vida pela luta dos destituídos em suas ações sem partidos nem
governos. Essa teoria e consciência política anarquista disseminada e muitas
vezes sem dizer o nome, é que tem libertado e conseguido mudar o mundo na
atualidade para milhões de pessoas. Basta você olhar em volta que você vai ver
como os movimentos sociais, as redes sociais e a própria internet estão mudando
o mundo. Como sempre os anarquistas propuseram. E o resto vai a reboque. Todos
estão cansados de serem enganados e vítimas de um fascismo que também não
assume o nome. Nós já fizemos, até então muito mais a nível mundial, do que
todas as ditas revoluções frustradas pelo exercício sanguinolento do exercício
do poder e os privilégios dos que tomaram o poder em nome dos oprimidos.
Como o poder não existe, nessas
tomadas do poder por supostos líderes se dizendo revolucionários os fazem
acumular privilégios e dominar todos. Gradativamente a desilusão de todos que
deixam de acreditar nos novos donos do poder, inicialmente um dissidente, depois pequenos grupos, mas
quando o desconforto e a decepção atingem quase todos, até os que estão
governando ou vão governar, o poder supostamente revolucionário cai. Não foi
isso que vimos com o fascismo, o nazismo, o stalinismo e muitas outras pequenas
e ridículas ditaduras mundo afora?
Primeiro, o espanto diante das
propostas anarquistas, depois começa o namoro com elas e, muitas vezes sem
dizer o nome, aderem, concordam, com o que estamos sugerindo. Por isso, hoje as
mulheres são iguais aos homens em países que já estabeleceram isto, os
considerados loucos são melhor tratados, não se admite racismo, não se proíbem
livros, filmes, peças de teatro, nudismo e sexo explícito entre outras
libertações na eliminação de relações de poder nessas dominações do homem pelo
homem por elites fascistas. Microrrevoluções efetuadas pelo povo, em geral
mudando com discursos anarquistas e com os anarquistas, sem dizer o nome, de forma anarquista, sem amos e sem partidos,
a realidade no aqui e agora. O poder cede e de tanto ceder morrerá. E essas
mudanças não molestaram ninguém, apenas nos provaram que a liberdade não
destrói, ao contrário, faz viver melhor a todos. E em algumas dessas sociedades
o nível econômico de todos tem melhorado muito. Ou seja, no único medidor
possível, que é diminuir a diferença entre o que ganha mais e o que ganha
menos. O que destrói, enlouquece, cria monstros é o autoritarismo quando
disseminado em uma sociedade.
Vamos detalhar agora que a reedição do cuidado
de si como enfrentamento do poder em Foucault, foi uma solução muito próxima do
anarquismo individualista. Temos
aí as semelhanças entre Foucault e os
anarquistas individualistas como Han Hyner e Emile Armand. No meu entender, os
anarquistas têm uma vocação muito grande para criar termos que geram mal
entendidos. O anarcoindividualismo é um deles. Alguns pensam que é um elogio ao
egoísmo. Não é. É uma garantia de liberdade. É não se submeter, até por alguns
que, se dizendo anarquistas ou assim pensando, podem consciente ou
inconscientemente estabelecer relações de poder com outros anarquistas. Cabe
não termos medo de palavras que muitas vezes não correspondem às coisas. Han
Hyner no seu Manual Filosófico do
Individualista, publicado no Brasil pela Editora Germinal, em 1966, é
particularmente importante porque ele associa o anarquismo aos estóicos. O que
Foucault também o fez em
A Hermenêutica
do Sujeito. Foucault tem o mesmo ponto de vista em relação à importância
dada aos estóicos, epicuristas e, depois, com os cínicos, no seu último curso
no Collège de France, A Coragem da Verdade.
Não
se pode mudar o que nos indigna com eficiência sem mudar a nós mesmos.
Claro, porque somos resultado de uma sociedade fascista e capitalista. E
enfrentar o fascismo que está em nós é a primeira tarefa. O cuidado de si é o
caminho para, sendo o mestre de si mesmo, escapar da objetivação, subjetivação,
individualização e totalização, resultados do exercício da dominação do
sujeito. E uma maneira de praticar o cuidado de si pode ser com os estóicos,
epicuristas e os cínicos.
O anarquismo é mais um método, uma
caixa de ferramentas, como Foucault também definiu seu pensamento, do que uma
teoria ossificada e terminada. Esse método pode desenvolver múltiplas teorias,
práticas, estilos de vida, maneiras de pensar e agir. Desde a arte até as barricadas.
Como método o anarquismo parte de apenas um postulado que é recusar todo tipo
de dominação, diagnosticar onde se escondem e se mascaram exercícios de poder e
procura criar e experimentar organizações, maneiras de viver sem relações de
poder. Ou, como também disse Foucault no seu prefácio do livro de Deleuze e
Guattari Anti-Édipo, criar relações
não fascistas.
Outra semelhança entre o anarquismo
e Foucault é o pensamento de Bakunin e em relação à verdade e as ciências. Em
Deus e o Estado Bakunin colocou, e foi
um tema recorrente em Foucault, que é através da verdade e, em grande parte,
surgindo principalmente com as ciências humanas, que se domina os homens. Isto
é, principalmente no século XIX as ciências humanas contribuíram para fazer
surgir o sujeito sujeitado nessa estratégia de relacionar saber e verdade com o
poder. Você pode ler
Deus e o Estado de Bakunin em
http://livros01.livrosgratis.com.btr/cv000020.pdf Acessei em 1º de maio de 2016. Os grifos são meus. Assim escreveu Bakunin:
“A liberdade do homem consiste
unicamente nisto: ele obedece às leis naturais porque ele próprio as reconheceu
como tais, não porque elas lhe foram impostas exteriormente, por uma vontade
estranha, divina ou humana, coletiva ou individual, qualquer. Suponde uma
academia de sábios, composta pelos representantes mais ilustres da ciência;
imaginai que esta academia seja encarregada da legislação, da organização da
sociedade, e que, inspirando-se apenas no amor da mais pura verdade, ela só
dite leis absolutamente conforme às mais recentes descobertas da ciência. Pois
bem, afirmo que esta legislação e esta organização serão uma monstruosidade,
por duas razões: a primeira, é que a ciência humana é sempre necessariamente
imperfeita, e que, comparando o que ela descobriu com o que ainda lhe resta a
descobrir, pode-se dizer que está ainda em seu berço. De modo que, se quiséssemos forçar a vida prática dos homens, tanto
coletivo quanto individual, a se conformar estritamente, exclusivamente, com os
últimos dados da ciência, condenar-se-ia tanto a sociedade quanto os indivíduos
a sofrer martírio sobre um leito de Procusto, que acabaria em breve por
desarticulá-los e sufocá-los, ficando a vida sempre infinitamente maior do que
a ciência. A segunda razão é a seguinte: uma sociedade que obedecesse à
legislação emanada de uma academia científica, não porque ela tivesse
compreendido seu caráter racional - em cujo caso a existência da academia se
tornaria inútil - mas porque esta legislação, emanando da academia, se imporia
em nome de uma ciência que ela veneraria sem compreendê-la, tal sociedade não
seria uma sociedade de homens, mais de brutos. Seria uma segunda edição
dessas missões do Paraguai, que se deixaram governar durante tanto tempo pela
Companhia de Jesus. Ela não deixaria de descer, em breve, ao mais baixo grau de
idiotia. Mas há ainda uma terceira razão que tornaria tal governo impossível. É
que uma academia científica, revestida desta soberania por assim dizer
absoluta, ainda que fosse composta pelos homens mais ilustres; acabaria
infalivelmente, e em pouco tempo, por se corromper moral e intelectualmente. E
atualmente, com o pouco de privilégios que lhes deixam, a história de todas as
academias. O maior gênio científico, no
momento em que se torna acadêmico, um sábio oficial, reconhecido, decai
inevitavelmente e adormece. Perde sua espontaneidade, sua ousadia
revolucionária, e a energia incômoda e selvagem que caracteriza a natureza dos
maiores gênios, sempre chamada a destruir os mundos envelhecidos e a lançar os
fundamentos dos novos mundos. Ganha sem dúvida em polidez, em sabedoria
utilitária e prática, o que perde em força de pensamento. Numa palavra, ele se
corrompe. É próprio do privilégio e de toda posição privilegiada matar o
espírito e o coração dos homens. O homem privilegiado, seja política, seja
economicamente, é um homem depravado de espírito e de coração. Eis uma lei
social que não admite nenhuma exceção e que se aplica tanto a nações inteiras
quanto às classes, companhias e indivíduos. E a lei da igualdade, condição
suprema da liberdade e da humanidade. O objetivo principal deste estudo é
precisamente demonstrar esta verdade em todas as manifestações da vida humana.
Um corpo científico, ao qual se tivesse confiado o governo da sociedade,
acabaria logo por deixar de lado a ciência, ocupando-se de outro assunto; e
este assunto, o de todos os poderes estabelecidos, seria sua eternização,
tornando a sociedade confiada a seus cuidados cada vez mais estúpida e, por
conseqüência, mais necessitada de seu governo e de sua direção. Mas o que é verdade para as academias
científicas, o é igualmente para todas as assembléias constituintes e
legislativas, mesmo quando emanadas do sufrágio universal. Este último pode
renovar sua composição, é verdade, o que não impede que se forme, em alguns
anos, um corpo de políticos, privilegiados de fato, não de direito, que,
dedicando-se exclusivamente à direção dos assuntos públicos de um país, acabem
por formar um tipo de aristocracia ou de oligarquia política. Vejam os
Estados Unidos e a Suíça. Assim,. nada de legislação exterior e nada de
autoridade, uma, por sinal, sendo inseparável da outra, e todas as duas
tendendo à escravização da sociedade e ao embrutecimento dos próprios
legisladores. Decorre daí que rejeito
toda autoridade? Longe de mim este pensamento. Quando se trata de botas, apelo
para a autoridade dos sapateiros; se se trata de uma casa, de um canal ou de
uma ferrovia, consulto a do arquiteto ou a do engenheiro. Por tal ciência
especial, dirijo-me a este ou àquele cientista. Mas não deixo que me imponham
nem o sapateiro, nem o arquiteto, nem o cientista. Eu os aceito livremente e
com todo o respeito que me merecem sua inteligência, seu caráter, seu saber,
reservando todavia meu direito incontestável de crítica e de controle. Não me contento em consultar uma única
autoridade especialista, consulto várias; comparo suas opiniões, e escolho
aquela que me parece a mais justa. Mas não reconheço nenhuma autoridade
infalível, mesmo nas questões especiais; consequentemente, qualquer que seja o
respeito que eu possa ter pela humanidade e pela sinceridade desse ou daquele
indivíduo, não tenho fé absoluta em ninguém. Tal fé seria fatal à minha razão, à
minha liberdade e ao próprio sucesso de minhas ações; ela me transformaria
imediatamente num escravo estúpido, num instrumento da vontade e dos interesses
de outrem. Se me inclino diante da autoridade dos especialistas, e se me
declaro pronto a segui-la, numa certa medida e durante todo o tempo que isso me
pareça necessário, suas indicações e mesmo sua direção, é porque esta
autoridade não me é imposta por ninguém, nem pelos homens, nem por Deus. De
outra forma as rejeitaria com horror, e mandaria ao diabo seus conselhos, sua
direção e seus serviços, certo de que eles me fariam pagar, pela perda de minha
liberdade e de minha dignidade, as
migalhas de verdade, envoltas em muitas mentiras que poderiam me dar.
Inclino-me diante da autoridade dos homens especiais porque ela me é imposta
por minha própria razão. Tenho consciência de só poder abraçar, em todos os
seus detalhes e seus desenvolvimentos positivos, uma parte muito pequena da
ciência humana. A maior inteligência não bastaria para abraçar tudo. Daí
resulta, tanto para a ciência quanto para a indústria, a necessidade da divisão
e da associação do trabalho. Recebo e dou, tal é a vida humana. Cada um é
dirigente e cada um é dirigido por sua vez. Assim, não há nenhuma autoridade
fixa e constante, mas uma troca contínua de autoridade e de subordinação
mútuas, passageiras e sobretudo voluntárias. Esta mesma razão me proíbe, pois,
de reconhecer uma autoridade fixa, constante
e universal, porque não há homem universal, homem que seja capaz de aplicar
sua inteligência, nesta riqueza de detalhes sem a qual a aplicação da ciência a
vida não é absolutamente possível, a todas as ciências, a todos os ramos da
atividade social. E, se uma tal
universalidade pudesse ser realizada em um único homem, e se ele quisesse se
aproveitar disso para nos impor sua autoridade, seria preciso expulsar esse
homem da sociedade, visto que sua autoridade reduziria inevitavelmente todos os
outros à escravidão e à imbecilidade. Não penso que a sociedade deva
maltratar os gênios como ela o fez até o presente momento; mas também não acho
que os deva adular demais, nem lhes conceder quaisquer privilégios ou direitos
exclusivos; e isto por três razões; inicialmente porque aconteceria com
freqüência de ela tomar um charlatão por um gênio; em seguida porque, graças a
este sistema de privilégios, ela poderia transformar um verdadeiro gênio num
charlatão, desmoralizá-lo, animalizá-lo; e, enfim, porque ela daria a si um
senhor. Resumindo. Reconhecemos, pois, a autoridade absoluta da ciência porque
ela tem como objeto único a reprodução mental, refletida e tão sistemática
quanto possível, das leis naturais inerentes à vida material, intelectual e
moral, tanto do mundo físico quanto do mundo social, sendo estes dois mundos,
na realidade, um único e mesmo mundo natural. Fora desta autoridade
exclusivamente legítima, pois que ela é racional e conforme à liberdade humana,
declaramos todas as outras autoridades mentirosas, arbitrárias e funestas.
Reconhecemos a autoridade absoluta da ciência, mas rejeitamos a infalibilidade e
a universalidade do cientista. Em nossa igreja - que me seja permitido
servir-me por um momento desta expressão que por sinal detesto: a igreja e o
Estado são minhas duas ovelhas negras; em nossa Igreja, como na
Igreja protestante, temos um chefe, um Cristo invisível, a ciência; e como os
protestantes, até mais conseqüentes do que os protestantes, não queremos
tolerar nem o papa, nem o concilio, nem conclaves de cardeais infalíveis, nem
bispos, nem mesmo padres. Nosso Cristo se distingue do Cristo protestante no
fato de este último ser um Cristo pessoal, enquanto o nosso é impessoal; o
Cristo cristão, já realizado num passado eterno, apresenta-se como um ser
perfeito, enquanto a realização e a perfeição de nosso Cristo, a ciência, estão
sempre no futuro: o que equivale a dizer que elas jamais se realizarão. Ao não
reconhecer outra autoridade absoluta que não seja a da ciência absoluta, não
comprometemos de forma alguma nossa liberdade. Entendo por ciência absoluta a
ciência realmente universal, que reproduziria idealmente, em toda a sua
extensão e em todos os seus detalhes infinitos, o universo, o sistema ou a
coordenação de todas as leis naturais, manifestas pelo desenvolvimento
incessante dos mundos. É evidente que esta ciência, objeto sublime de todos os esforços
do espírito humano, jamais se realizará em sua plenitude absoluta. Nosso Cristo
permanecerá pois eternamente inacabado, o que deve enfraquecer muito o orgulho
de seus representantes titulados entre nós. Contra este Deus, filho, em nome do
qual eles pretendiam nos impor sua autoridade insolente e pedantesca,
recorremos a Deus pai, que é o mundo real, a vida real, do qual ele é apenas a
expressão muito imperfeita, e do qual somos os representantes imediatos, nós,
seres reais, vivendo, trabalhando, combatendo, amando, aspirando, gozando e
sofrendo. Numa palavra, rejeitamos toda
legislação, toda autoridade e toda influência privilegiada, titulada, oficial e
legal, mesmo emanada do sufrágio universal, convencido de que ela só poderia
existir em proveito de uma minoria dominante e exploradora, contra os
interesses da imensa maioria subjugada. Eis
o sentido no qual somos realmente anarquistas.” Os grifos são meus.
Este texto de Bakunin é uma definição do que é
o anarquismo e o que é ser anarquista.
Um dos problemas centrais analisado
pelos anarquistas, e talvez até o fez surgir, foi o grande descontentamento com o resultado das
revoluções que pregavam liberdade, igualdade e fraternidade e depois o
socialismo e exerceram novas formas de dominação e exploração. Ou seja, como os
que tomaram o poder prometendo igualdade e liberdade se transformaram, em todos
os países e em épocas diferentes, em uma nova classe opressora, em um governo
fascista. Por isso que os anarquistas pensaram que a causa que transformava
libertação em uma nova opressão era manter o Estado e o governo. Daí o
postulado de uma sociedade sem Estado. Sim, estavam com a razão. Mas aqui vamos
colocar com que estratégia se pode efetuar essa mudança.
Já Foucault não iniciou por aí suas
reflexões. Mas chegou às mesmas conclusões. Ele iniciou suas pesquisas
deslocando da centralização do poder no Estado para a verdade como uma
estratégia de exercício de poder. E o cuidado de si, como solução para escapar
a essa dominação pelo saber-poder. O que também vemos no texto acima de
Bakunin. Bakunin já desconfiava de toda autoridade e também da autoridade da
ciência, sem o crivo da liberdade individual, ou seja, na terminologia de
Foucault, o retorno aos gregos que praticavam o cuidado de si para serem livres
através de serem os mestres de si mesmos e portanto capazes, como os cínicos,
de expressar a sua verdade mesmo muitas vezes cientes de possível punição com a
morte. A questão política em Foucault se inicia com uma epistemologia de como
se acessa o conhecimento. Na eliminação do cuidado de si no momento cartesiano
esse procedimento epistêmico levou a desencadear uma questão política. Mas já
encontramos em Bakunin também que nem a ciência poderia submeter o homem aos
seus discursos.
E por isso foi que os anarquistas
postularam que só seria possível garantir a liberdade e igualdade entre os
homens se eliminassem o Estado e o governo. Mas aí se coloca uma questão:
substituir por qual forma de administração dos homens e das coisas o Estado e o
governo? E aí uma série de experiências
e propostas foram colocadas pelos anarquistas como autogestão, ação direta,
entre outras. No meu entender essas experiências e tentativas nas histórias do
anarquismo são importantes, mas só elas não puderam satisfazer a todos porque
estamos séculos vivendo sob a dominação de governos. Cabe mudar o olhar nessa
questão. E Foucault nos permite isso. Não mais só se fixar no poder como Estado
e governo, como o centro da dominação, mas nas relações de poder como Foucault
fez ao deslocar o olhar na sua filosofia política para as relações de poder. Ou
seja, não se fixar apenas nos mandatários, mas focar as relações de poder a
partir dos súditos e encontrar a saída da dominação a partir daí as mudando
para relações sem poder.
Para Foucault o poder não existe. Ou
seja, não é só a partir do poder central que surge a sujeição. O poder do
Estado e do governo administra e faz retornar em rede um diálogo constante
entre o poder central e os seus súditos nas malhas do poder. Portanto o governo
se exerce com as relações de poder disseminadas em toda a sociedade. É um
reflexo de microrrelações diárias de poder entre todos contra todos. E a
solução é mudar, inicialmente em nós mesmos, através do cuidado de si, as
relações de poder para relações sem poder, ou seja, relações não fascistas. Se
Foucault não foi um anarquista e muito menos um anarcossindicalista pode-se
interpretar seu pensamento como semelhante a um anarco-individualismo. Aliás, o que os anarquistas o fazem e
experimentam há séculos em todas as suas atividades desde as relações
trabalhistas, amorosas, pedagógicas e familiares que é criar outras
instituições e comportamentos, no aqui e agora, como escolas, produção de bens
sem serem organizações autoritárias e fascistas.
Mas, na realidade, todo anarquista é
individualista porque não admite nada e ninguém que o domine nem mesmo
organizações anarquistas ou que assim se autodenominem. E aqui sugerimos que, a
partir daí, que se associem a outros anarquistas individualistas ou não para
juntando forças garantir sua autonomia. Aliás, eu acho que todo anarquista é
anarcoindividualista, mas isso é uma outra história. Sei que admitir o termo individualista nos
ofende assim como o cuidado de si se mal lidos porque se pensa que se excluiu o
outro e não é isto. Cuidar de si significa também cuidar dos outros para unir
forças. Ora, o que postulamos aqui é uma estratégia revolucionária que, se
mudarmos as relações de poder para relações sem poder, ou seja, relações não
fascistas, mudaremos o mundo. E assim enfrentarmos o poder a partir de mudar a
si mesmo e ao mundo. Ou seja, o Estado e
governo passam a ser, como o poder não existe, administradores de relações sem
poder. Ou seja, se transformar o Estado e o governo em uma forma de organização
libertária de apenas administrar relações sem poder nas malhas de relações sem
poder. O que aqui se propõe é uma mutação de organização em sociedades mais
complexas como as nossas de administração das relações sem poder. Se você ler
atentamente Pierre Clastres, em toda sua obra ele mostra que antes de surgir o
Estado, existia uma sociedade organizada com um cacique. Mas um cacique que não
governava, apenas cumpria a função de governar o seu desgoverno. Ou seja,
organizar uma sociedade para manter paz e tranquilidade de todos. Organização
de uma administração cujo único objetivo é garantir que as relações entre todos sejam relações sem poder. É o Estado e o
governo, se quiserem ainda manter esses nomes para tranquilizar a todos que
viveram durante séculos sob sua opressão e se sentem órfãos sem eles, ser
unicamente administrador de relações sem poder. Portanto, com outro nome pode
ser chamada uma democracia libertária
plena, que é uma organização de
uma sociedade libertária. Se for necessária uma constituição que garanta que
seja um conjunto de leis que visam exclusivamente manter e garantir relações
sem poder. E com o tempo e a prática libertária ignorá-la porque deixa de ser
necessária. A questão e a teoria e a
prática revolucionária se concentram na crítica às relações de poder e a
substituir por relações sem poder em todas as instâncias da sociedade. E essa é
também a prática revolucionária que começa com o cuidado de si transformando o
sujeito sujeitado e assim o deixa apto a criar relações sem poder. Essa é a prática
fundamental dos anarcofoucaultianos. As relações sem poder para todos e em toda
a sociedade.
Um exemplo atual dessa prática são
as leis que impedem, no aqui e agora, os racistas de agredir e oprimir os
negros, índios, ciganos e outros excluídos; bater e estuprar as mulheres;
encarcerar, matar e negar direitos a quem pratica a liberdade sexual. Não é
destruir o Estado e o governo, mas mudar as relações de poder para relações sem
poder e assim transformar os Estados e governos em administradores de relações
sem poder. Uma sociedade sem relações de poder e, portanto anarquista, mas
organizada e eficiente na manutenção da paz e respeito entre seus cidadãos em
uma democracia libertária plena. E
sugiro que os anarquistas e anarcofoucaultianos a construam. Na realidade, uma
sociedade sem Estado, porque ele se transformou em um administrador das
relações sem poder, ou seja, relações não fascistas.
É, portanto, na modificação da
microfísica do poder que está a solução. Não é tomar o poder que não existe e
não se pode tomar o que não existe. Por isso é que quando revolucionários de
todos os tipos tomaram o poder, nada conseguiram mudar porque as relações de
poder estavam em toda a sociedade e se refletiam neles. O poder não existe, ele
é apenas um reflexo, um eixo de relações de poder. E na ilusão que se tomou o
poder, mudando apenas a guarda, descobre que não mudou o que sustentava o poder
e então ela o obriga a exercer o poder que volta a ser exercido como o antigo
regime ou talvez até com mais violência e fascismo. Isso ocorre porque o poder
é o resultado das malhas do poder e só mudando essas malhas de relações de
poder para relações sem poder é que se elimina o poder que vai refletir e
administrar relações sem poder. Como estamos vendo a análise tanto anarquista
como de Foucault foi a questão do poder. O poder para eles não é um epifenômeno
da economia, nem de outras causas jurídicas ou consensuais. O diagnóstico são
as relações de poder. E isso une os dois pensamentos, tanto dos anarquistas
como de Foucault.
Os anarquistas já praticam, ou assim
se esforçam nos seus grupos e ações revolucionárias, as relações sem poder. É
isso que sempre definiu os agrupamentos e organizações anarquistas. E aqui com
o anarcofoucaultismo estamos mostrando a transformação de baixo para cima e não
de cima para baixo. Portanto, e devido a isso, o pensamento de Foucault é de
suma importância para os anarquistas e todos aqueles que querem mudar o mundo
sem exercer nem tomar o poder. Aliás, o
que se conseguiu já, no aqui e agora,
que é outro postulado do anarcofoucaultismo, como nas leis brasileiras Maria da
Penha (contra misoginia) e Caó (contra o racismo).
Assim sendo, com movimentos específicos associados com o mesmo objetivo de
mudar o mundo no aqui e agora com ações especificas e pensadores específicos. Foucault também
chamou atenção para o que é um intelectual específico. E muitos desses
movimentos conseguiram, no mundo, no aqui
e agora, repito, permitir mais liberdades e expressões individuais livres.
E estamos citando apenas algumas vitórias, mas que levaram milhões de pessoas a
viverem melhor.
Com outros nomes ou talvez, com
anarquistas que não ousam dizer o nome, muitos grupos e ativistas específicos,
sem Deus, amos, partidos e políticos, que vão a reboque, mudar o mundo no aqui e agora, sem nenhuma profecia nem
hegeliana, marxista, utópica ou religiosa. Afinal, não somos profetas e só
temos uma vida para ficar imaginando um paraíso no futuro. Portanto, podemos
dormir tranquilos que em uma democracia
libertária plena existe uma efetiva ordem de organizar um país, por mais
populoso e de grande território, e assim é possível porque a malha será com
relações sem poder. Quer dizer que autoritários e fascistas explorem, dominem e
assim agridam a população exercendo relações de poder quer nas escolas, nas
famílias, nos hospitais, nos hospícios enfim em toda a rede e malhas de
relações que circulam na sociedade. Não é uma utopia porque com o nome de
democracia plena, só falta aí o libertária. É uma experiência, que embora ainda
acanhada diante do que os anarcofoucaultianos sugerem, a Holanda, Dinamarca,
Suécia, Noruega, Islândia, Finlândia, Suiça já mostram um processo de
administração democrática muito diferente dos outros países do mundo. Esses
paises, por adotar leis e garantias de autonomia e liberdade de seus
habitantes, criaram uma democracia plena para todos. Estou chamando atenção que
esses países têm ainda, sendo capitalistas, uma forma mais plena de democracia
na qual o povo consegue criar leis que garantam a liberdade de todos. Mas não
confunda a democracia plena desses países com a democracia libertária plena ou
sociedade libertária plena se acharem já gasto o termo democracia que é o que
estou sugerindo. O que proponho aqui é a transformação do Estado para situá-lo
apenas como administração das relações sem poder em todas as suas instâncias. E
isso se consegue de baixo para cima e não de cima para baixo. Desde você, que
me lê, cuidando de si, criando escolas, famílias, bairros libertários etc.,
isto é, em que se praticam formas organizadas de relações sem poder.
Foucault
escreveu, em vários momentos de suas reflexões, alguns manifestos políticos
bastante semelhantes aos manifestos anarquistas. O foco no seu conceito de
relações de poder, deslocando do Estado e do governo para analisar o poder,
portanto, substituindo o conceito de poder e Estado como o principal, já foi um
passo epistemológico anarquista.
Em 1982, Foucault escreveu O Sujeito e o Poder. Esse texto é um
resumo de grande parte do seu pensamento. Sugiro que ele deve ser um dos textos
básicos para os anarcofoucaultianos. Esse é também, para nós, o manifesto que
nos deixou Foucault. Sugiro também que se o leia na versão publicada aqui no
Brasil pela editora Forense Universitária, do Rio de Janeiro, no Ditos e Escritos IX, publicado em 2014.
É nesse texto, na página 128, dessa edição que ele escreveu:
Sem
dúvida, o objetivo principal, hoje, não é descobrir, mas recusar o que nós
somos. Devemos imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos dessa
espécie de “dupla obrigação” política que são a individualização e a
totalização simultâneas das estruturas do poder moderno.
Poder-se-ia
dizer, para concluir, que o problema, ao mesmo tempo, político, ético, social e
filosófico que se apresenta a nós, hoje, não é de tentar libertar o indivíduo
do Estado e de suas instituições, mas nos livrarmos, nós, do Estado e do tipo
de individualização que a ele se prende. Precisamos promover novas formas de
subjetividade, recusando o tipo de individualização que se nos impôs durante
vários séculos.
No
meu entender, o manifesto que Foucault escreveu em O Sujeito e o Poder já basta. Agora é preciso se
ter certo cuidado em qual versão vai-se ler em português. Ele
escreveu em inglês O Sujeito e o Poder. Ele apareceu primeiro
publicado como apêndice no livro de Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow Michel Foucault Uma trajetória filosófica.
Entretanto, para se publicar na França, Foucault corrigiu e essa correção é que
foi publicada nos Ditos e Escritos
também aqui no Brasil. É essa que se deve ler por ser a versão final feita por
Foucault.
Eis um outro texto no qual, no meu entender,
Foucault escreveu também um outro manifesto político que foi o prefácio
do Anti-Édipo de Deleuze e Guattari. Este manifesto na edição
brasileira está no Prefácio (Anti-Édipo) 1977 em Ditos e
Escritos VI, Repensar a Política, publicado em 2011
pela editora Forense Universitária, do Rio de Janeiro.
(...) O Anti-Édipo
é uma introdução à vida não fascista. Essa arte de viver
contrária a todas as formas de fascismo, quer já estejam instaladas ou próximas
de sê-lo, acompanha-se de certo número de princípios essenciais, que resumiria,
como segue, se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida
cotidiana:
- liberem a ação política de toda forma de
paranóia unitária e totalizante;
- façam crescer a ação, o pensamento e os desejos por
proliferação, justaposição e disjunção, antes que por subdivisão e
hierarquização piramidal;
- liberem-se das velhas categorias do Negativo (a lei,
o limite, as castrações, a falta, a lacuna), que por tanto tempo o pensamento
ocidental sacralizou, como forma de poder e modo de acesso à realidade.
Prefiram o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades,
os arranjos móveis aos sistemas. Considerem que o que é produtivo não é
sedentário, mas nômade;
- não imaginem que seja preciso ser triste para ser
militante, mesmo se o que se combate é abominável. É o liame do desejo à
realidade (e não sua fuga nas formas da representação) que possui uma força
revolucionária;
- não utilizem o pensamento para dar a uma prática
política um valor de verdade; nem a ação política para desacreditar um
pensamento, como se ele só fosse de pura especulação. Utilizem a prática
política como um intensificador do pensamento, e a análise como multiplicador
das formas e dos domínios de intervenção da ação política;
- não exijam da política que restabeleça os “direitos”
do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é produto do poder.
O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação e pelo deslocamento
dos diversos arranjos. O grupo não deve ser o liame orgânico que une os
indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”;
- não caiam apaixonados pelo poder.
A
Prática
1 – A legalidade das práticas. Qualquer prática que for efetuada pelos
anarcofoucaultianos só deve ser feita de acordo com as leis vigentes do país em
que for efetivada. Nenhuma ação pode ser feita se vai de encontro às leis
vigentes porque é ineficaz. O movimento anarcofoucaultiano é, sob todos os
pontos de vista, legal e respeita todas as leis vigentes no país em que
atua.
Porque
as modificações propostas para se chegar a uma democracia libertária plena tem como estratégia principal a
não-violência. Recentemente movimentos sociais conseguiram que os próprios
governos estabelecessem leis contra o racismo, os espancamentos e dominação de
mulheres e a exclusão das leis vigentes e perseguições contra adultos que
praticam a liberdade sexual que os anarquistas sempre chamaram de amor livre. O
Estado aí sofreu uma mutação das leis a partir da ação libertária de grupos sem
partidos, sem deuses e sem amos, pela liberdade sexual.
O casamento tanto entre pessoas de sexos
diferentes como com o mesmo sexo deixou de ser uma união fascista, inicialmente
com o desquite e depois o divórcio. O
casamento é apenas um contrato, que pode ser desfeito. Mas que garante aos
casados uma série de benefícios mantidos pelo Estado, como a pensão no
falecimento de um dos cônjuges. E o mais importante, mesmo sem o casamento, se
estende aos que se conviveram em uma relação estável, com o nome pejorativo de
amasiados. Hoje, até em um país autoritário como o Brasil, a outra família pode
ter os benefícios, desde 1988, caso o pai faleça, desde 1988. De uma forma
muito curiosa se oficializou a poligamia. Oficializou-se o harém e tudo ficou
em paz para quem quer ter um harém e o possa sustentar.
2 – Honestidade libertária plena. Princípio prioritário e fundamental.
Praticar o cuidado de si a partir dos estóicos, epicuristas e cínicos como
recomendaram o anarquista Han Hyner e Foucault. O estudo e a prática dos
ensinamentos desses filósofos são pré-requisitos para se tornar um
anarcofoucaultiano. É através dele que se muda a si mesmo para modificar tudo
aquilo que lhe indigna contra a si e aos outros.
Porque
sem essa ética única: não ser escravo dos outros, mas também não ser
escravo de si mesmo e, assim sendo, inimigo de si mesmo, nada pode mudar na
realidade. E na prática não se associar com pessoas desonestas, mesmo se
dizendo anarquistas. Nenhum projeto ou prática revolucionária funciona sem
pessoas que possuam autocontrole de seus sentimentos e emoções, que sejam
autodisciplinadas e autodidatas.
É
importantíssimo o cuidado de si com a leitura dos estóicos, epicuristas
e cínicos, como postularam Hyner e Foucault, para não ser dominado e
escravizado por si mesmo, o que levaria ao descontrole de impulsos que o faria
ser vítima de uma autoditadura fascista interior consigo e com os outros. O
maior gosto superior a qualquer vaidade, orgasmo, dinheiro e qualquer tipo de
prazer é quando você, delicada e como muito auto-amor, consegue se
autodisciplinar e se controlar porque assim você começa a confiar e ter um
imenso orgulho de você mesmo. No aumento da força interior, a partir daí, se
ama e confia profundamente em você mesmo. Você conta com você e não o
contrário. Só assim você será livre e, no meu entender, forte e um anarquista.
Sugiro que experimente o prazer que existe em expulsar o seu ditador interior
com o autocontrole e autodisciplina. O maior prazer é eliminar o fascista que
está em você, preparado para dá o bote e o colocar em um campo de concentração
interior, vítima de si próprio.
No
cuidado de si, sendo uma metodologia para gerar o conhecimento, não ocorre uma
dominação do sujeito, muito pelo contrário, é ele que, através do cuidado de
si, já impede que o saber o domine. Afinal, você não é um aprendiz de
feiticeiro, mas o próprio e eficiente feiticeiro que pode com essa teoria
dominar as forças e as adversidades que você desencadeou ou lhe apareceram sem
você as esperar. Se você é o mestre de si mesmo, procura seguir os estóicos,
epicuristas e cínicos, para não ser escravo de si mesmo, quando acessa a
verdade a partir daí, o faz tendo como prioritário a humanidade de si e dos
outros. Isso ocorre porque o cuidado de
si é uma reação à escravidão e dominação de qualquer tipo, o que inclui não ser
escravo de si mesmo, nem das coisas, nem dos outros, nem das verdades. Por isso
é que você é o mestre de si mesmo. A questão política e, portanto,
epistemológica, é não é só a verdade, mas como
se acessa a verdade. E se eliminou o cuidado de si no ato de conhecer se
eliminou qualquer possibilidade de criar uma ciência cuja ética principal é ser
voltada para o homem e não o contrário.
A nossa metodologia é a reativação do cuidado de si subordinando o
conhece-te a ti mesmo como descobriram, na sabedoria dos gregos antigos com os
estóicos, epicuristas e cínicos e Hyner e Foucault.
3
– A
Crítica sistemática da dominação do homem pelo homem. A contestação
teórica contra o autoritarismo em todas as suas instâncias. Combater sempre com uma verdade, portanto uma
crítica das verdades a outras verdades por mais que se apresentem como liberais
ou outros disfarces. Não pensem que a verdade dita pelos libertários tem a
pretensão de ser uma verdade absoluta, apenas é uma verdade contra outra em
dado momento histórico. A que vencer ganha.
Maite Laurrauri na Revista do Ocidente, publicada em Madri,
em abril de 1989, assim colocou:
Foucault
cree que al poder se le combate com poder y por tanto a los saberes com los
saberes. Su própria labor de análises de las estructuras de poder que hán
permitido la formación de determinados saberes es um saber, um conocimiento com
el que combatir estas ciências. (...) A estes resultados científicos há que
oponerles otros análises que pongam de manifiesto el reforzamiento del actual
poder político que aquéllos suponen. (...) Se trata más biem de afirmar una
verdade contra otra, de luchar que una verdad triunfe sobre otra.
Embora ache que uma tradução é uma
especialização de um profissional em tradução coloquei abaixo esse esboço dessa
tradução. O tradutor de textos é um profissional. Sem sermos profissionalmente
um tradutor e se ache capaz de exercer a profissão de tradutor, não deveria
traduzir nada. Quer dizer sem ter-se dedicado a ela profissionalmente e exclusivamente e toda sua vida. Se você porque
acredita saber a língua na qual está lendo o texto e assim o pode traduzir
também é ser um farsante. Traduzir um texto não é isso. São comparações com
outras traduções, é saber analisar bem o que vai-se escrever de uma língua para
outra para não eliminar do texto suas peculiaridades. Assim essa tradução aqui
feita por um amador é apenas um esboço e por isso está colocado o original
acima e uma minha tradução do texto, tentando facilitar para quem está lendo
esse manifesto agora:
Foucault
crê que o poder se combate com o poder e, portanto, os saberes com o saber. Seu
próprio trabalho de análise das estruturas do poder que permitiram a formação
de determinados saberes é um saber, um conhecimento que com ele pode-se
combater estas ciências. (...) A estes resultados científicos temos de opor
outras análises contra o que demonstra ser o fortalecimento que sustenta e
reforça o atual poder político. Trata-se
de afirmar uma verdade contra outra, de lutar que uma verdade triunfe sobre
outra.
Digo que a contestação de verdades é
uma das nossas principais práticas revolucionárias que é criar discursos, isto
é, a crítica constante das teorias
que justificam e promovem as relações de poder. Sempre os primeiros
enfrentamentos surgem de uma indignação diante de injustiças que geram atos
injustos e depois um discurso crítico da prática e do discurso que provocaram
as injustiças e indignação.
Porque é importante que os anarcofoucaultianos gerem
pesquisas científicas, filosóficas, artísticas sem relações de poder no ato de
construí-las e assim produzirem conhecimentos libertários, isto é, que promovam
relações sem poder para criar uma
democracia libertária plena na forma e conteúdo. A crítica sistemática das
relações de poder e seus discursos devem ser constantes. Criemos nossas instituições
e nossas pesquisas, artigos, revistas. Tudo para o anarcofoucaultiano deve ser auto, isto é, de si para si sendo o
mestre de si mesmo. Se quiserem, depois se submetam e consigam diplomas para
exercer essa ou aquela profissão. Mas o conhecimento real só pode ser adquirido
de forma autodidata, ou seja, quando você resolve ler, estudar, pesquisar.
Antes disso só existe a farsa do professor e seu aluno: o professor finge que
ensina e o aluno finge que aprende. A base de uma sugestão de educação libertária
é o encontro de duas ou mais pessoas que querem aprender juntas trocando
experiências. O que se deve estimular é esse encontro em um ambiente de
liberdade em que cada um escolhe o que gosta de aprender.
4 – O apoio mútuo e a ação direta.
Você pode ser um pesquisador e um
militante sozinho. Mas, se o quiser, una forças e crie uma organização sem
relações de poder com outros que são anarcofoucaultianos, isto é, que leram e
se identificam com o que está escrito nesse manifesto.
Sugiro então que criemos centros de experiência e pesquisas de
relações sem poder para criar uma
vida não fascista.
Sugiro experimentarmos, quem assim o
quiser, os seguintes possíveis projetos a partir dessas sugestões a serem
confirmados na prática:
Privilegiar
o aqui e agora. Efetuar ações que tenham, para você e companheiros, agir
para mudar também sua vida no dia a dia. Esse procedimento é um dos aspectos da
ação direta. Se unir com outros
anarcofoucaultianos, que é o apoio mútuo,
para praticar a ação direta. Isso
quer dizer criar uma malha sem relações de poder. A revolução, se ainda gostam
desse nome, está aí.
Uma das sugestões aqui colocadas é
estudar como detalhes o funcionamento do capitalismo para diagnosticar suas
brechas e agir para se beneficiar, absolutamente
de acordo com as leis vigentes, dentro da ética anarcofoucaultiana, no aqui e agora. Não é estratégico de
forma alguma ficar enfrentando o sistema de repressão do fascismo travestido de
democracia. Só as brechas possíveis e de
acordo com suas próprias leis podem ser uma estratégia eficiente para modificar
o que nos indigna. Afinal, não é com o veneno da cobra que se faz o antídoto? O anarcofoucaultismo deve ser,
portanto, também um instrumento de melhorar sua vida com o micro-enfrentamento
do capitalismo no aqui e agora. Não deve ser só sonhar como um futuro radiante.
É mudar sua realidade também no presente. O anarquismo é uma caixa de
ferramentas para você com o apoio mútuo
e com a ação direta, viver melhor no
aqui e agora, mesmo em sociedades
capitalistas. Perceber que associações de pessoas com relações sem poder podem
ser mais eficientes do que relações com poder no aqui e agora.
O apoio mútuo é quando o
anarcofoucaultiano cuida de si e do outro. É uma associação de anarquistas para
a prática do anarquismo foucaultiano. E é mudar o mundo no presente, aqui e
agora, de forma libertária. Que quer
dizer que somos honestos, estóicos e nos relacionamos sempre em relações sem
poder. Deixe a desonestidade para o capitalista e seus representantes.
E o que atrapalha o exercício dessa
prática? O que vamos aqui chamar de capitalista sem capital. É aquele que vem
destruir qualquer organização ou um grupo de pessoas. Ele faz isso para tomar
só para ele o que for possível arrecadar. Ele boicota e assim destrói todos que
ele consegue se aproximar porque só lhe interessa poder e dinheiro. Sobreviver
com o seu trabalho e viver dele é o que o anarquista faz, mas focar
obsessivamente em amealhar dinheiro sem nenhum limite para atingir esse
objetivo é o que define o capitalista com ou sem capital.
O capitalista não é só resultado de
uma economia, o capitalista é uma maneira de ser. É um comportamento. É uma filosofia de vida. O capitalista sem capital
visa apenas conseguir capital para si e poder. Quem quiser fazer surgir uma
ação libertária deve ter a habilidade para saber neutralizar o capitalista sem
capital que visa apenas na sua vida ter capital e poder para dominando o outro
o explorar para criar e aumentar seu capital.
Vamos compreender como esse
comportamento ocorre. Em primeiro lugar compreendam que ganhar dinheiro para
sobreviver de seu trabalho não é ser nem capitalista nem fascista. Precisamos
ganhar dinheiro para sobreviver em uma sociedade capitalista. Mas isto não faz
de você um capitalista. Quando você consegue ter renda do seu trabalho para
sobreviver de forma confortável não é nenhum crime. Quer dizer, o capital não
precisa ser o mestre de si mesmo e a sua meta de vida para dominar e explorar
os outros e se envaidecer porque ficou rico. Quer dizer ter poder, visibilidade
e fama porque tem capital acumulado. A diferença dessa filosofia de vida do
anarcofoucaultiano é que ele visa uma vida sem relações de poder. Ele quer só
viver e não dominar o outro nem o explorar exercendo o poder. Você para ser
feliz não precisa ser da “alta” sociedade, nem famoso, invejado, superior a
ninguém. Viva, crie se quiser, trabalhe e faça o que gosta. Isso é que traz
alegria e felicidade. Quando você sabe que não é canalha, que não explora os
outros nem os persegue, que é contra as injustiças com os seres humanos você se
sente muito feliz porque é honesto, anarquista e mestre de si mesmo. Você tem
orgulho de si mesmo, se ama devido a isto.
O resto é uma falsa felicidade. Riqueza e poder excessivos e viver para
isso é uma pobreza imensa que só vai lhe trazer frustrações porque você ficou
escravo do capital e do poder. Você talvez nem precise ter tudo que tem. Se tem
o que lhe dá algum conforto, de acordo com o que lhe faz feliz, precisa saber
quando vai parar de acumular capital e poder. Em uma relação sem poder você
quer se relacionar com os outros com um grande respeito mútuo pelas liberdades
e peculiaridades de ambos e isso, experimente, dá um imenso prazer.
Assim sendo sugiro que fundemos
centros de experiências sem relações de poder, ou seja, que visam mudar as
microfísicas do poder. Esses centros,
com seus estudos e pesquisas, são um laboratório para criar relações sem poder.
Esse laboratório deve ter sede mantida pelos seus membros e serem registradas
oficialmente no país que atuam. Sugiro que os anarcofoucaultianos pedagogos
experimentem criar escolas sem relações de poder que devem se estender até a
universidade. Sugiro que também devem associar anarcofoucaultianos para
enfrentar, através do apoio mútuo e
da ação direta, meios de
sobrevivência em sociedades capitalistas. Não é só mudar o mundo, mas mudar o
mundo através do anarquismo e/ou anarcofoucaultismo, mudando também sua vida no
aqui e agora. Por isso a honestidade dos anarcofoucaultianos deve ser, insisto, o
primeiro princípio sem o qual nada será construído.
Sugiro que é preciso se criar uma
malha com micro-ações econômicas e micro-ações antipoder. E essa malha deve ser
internacional respeitando as peculiaridades de cada povo e país. Você não deve
julgar ninguém porque você nem é Deus nem amo de ninguém. O poder, quase
sempre, pode consumir o próprio poderoso. A lenda do rei Midas é um mito grego
que ilustra muito bem a realidade de muitos capitalistas escravos da
mentalidade capitalista.
Não se iluda. O maior prazer que
existe é se ter confiança e orgulho de si mesmo. Quem nunca roubou, nunca
matou, nunca explorou, torturou, oprimiu nem humilhou ou outros é profundamente
feliz porque tem o maior dos orgulhos, que é o orgulho de si mesmo. Se fizer o
contrário, por mais que se auto-engane e se justifique é um desgraçado e
infeliz para todo o sempre, mesmo depois de morrer, porque entra na história,
mesmo se não ficou famoso por seu fascismo ou roubo, na sua micro-história da
memória dos que conviveram com ele, como um fascista psicopata ridículo e
idiota. Você gostaria de ser ou ter sido um Hitler, Mussolini ou Stalin ou
filhos e outros parentes deles? Para essas pessoas e seus descendentes só
restou o ódio e horror. Portanto, no meu entender, esse
é o caminho, para mudando a si mesmo, mudar o mundo.
Na vida um das coisas mais
importantes é saber com quem viver e se afastar de todo tipo de fascista porque
a nossa felicidade depende muito disso. Mas tenha cuidado porque esse fascista
pode ser você mesmo... Ser anarquista é se recusar a ser fascista. Não há outra
opção.
O anarcofoucaultismo é também um
estilo de vida. Um caminho para a estética da existência. Criar, para você mesmo, sua vida como uma obra de
arte da qual você se orgulha e não ser apenas mais um retrato de Dorian Gray.
Resumidamente é o que sugiro que
façamos:
1 – A crítica fundamentada contra
todas as formas de relações de poder. Apoiar a todos que lutam pacificamente e
de acordo com as leis vigentes para se libertar de relações de poder.
2 – Experimentar e criar relações
sem poder em todas as instâncias. Fundar organizações sem poder. Com esses dois
instrumentos políticos você estará mudando e eliminando o fascismo de todos os
tipos da face da terra. O número de pessoas anarquistas praticando o
anarquismo, sem dizer o nome, é muito grande.
3 – Criar grupos e organizações
anarquistas para divulgar essa maneira de viver e de mudar o mundo.
4 - Estudar o capitalismo e
descobrir e aproveitar suas brechas para, no aqui e agora, beneficiar as
pessoas que praticam relações sem poder.
Quem quer unir o pensamento de
Foucault e o anarquismo sugiro que leia, inicialmente, esses textos
emergenciais de Foucault que contribuíram com o anarquismo:
1-
O anti-Édipo: uma Introdução a uma vida
não fascista. (Prefácio à edição americana
de O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix
Guattari. Foi retomado em Dits et êcrits, de Foucault (Gallimard). O título é
da redação do Magazine Litteraire, onde foi publicado pela primeira vez em francês. Trad. Fernando
José Fagundes Ribeiro).
Prefácio (Anti-Édipo) em Ditos
e Escritos VI página 103 em 2011 pela editora Forence Universitária.
2 - O Sujeito e o Poder, na página 118, de Ditos e Escritos IX, em 2014, pela editora Forense Universitária.
3 - Em Defesa da Sociedade. A
aula de 14 de janeiro de 1976. Publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes.
4 -
As Malhas do Poder, na página
169, de Ditos e Escritos VIII, em 2012, pela editora Forense
Universitária.
5 – Em A
Hermenêutica do
Sujeito. A aula de 20 de janeiro
de 1982. Publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes. Seguida da Carta nº
50 de Cartas a Lucílio, de Sêneca.
Publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Aliás, se deve ler e praticar, com
sensatez, todas as Cartas a Lucílio,
de Sêneca e outros estóicos, epicuristas e os cínicos.