sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

A Analítica do Poder no Anarquismo e em Foucault

     
                                                                                                                                                                   Ricardo Líper                                   
          
Resumo

Tanto os anarquistas como Foucault tiveram como objeto de pesquisa as consequências do poder na constituição do sujeito. Não examinaram o poder como resultado nem da economia nem de contratos sociais. O pesquisaram empiricamente sem metafísica, historicismo, idealismo, hegelianismo. Usaram o mesmo objeto e o mesmo método em suas pesquisas. E constataram que a dominação e exploração do homem pelo homem foram executadas pelo exercício do poder e só com o seu enfrentamento é possível uma libertação dos homens com a organização de uma sociedade plenamente democrática e libertária. Foucault centralizou suas pesquisas na constituição da subjetividade do sujeito resultado das relações entre verdade e poder e propôs a solução com a reedição do cuidado de si, na qual o sujeito, sendo o mestre de si mesmo, enfrenta o poder. E os anarquistas postularam eliminar o poder em todas as relações humanas pelas mesmas razões. Essas duas soluções, tanto dos anarquistas como de Foucault, somam-se devido à mesma metodologia na análise do mesmo objeto de pesquisa. Por isso a questão da dominação do sujeito pelas relações de poder é, antes de tudo, epistêmica. Quer dizer que a conclusão da análise do poder, na condição e constituição do sujeito, depende da maneira de como ele foi analisado sendo objeto de pesquisa e com qual metodologia.

Palavras-chaves: anarquismo, epistemologia, poder.

Abstract

The Analytics of Power in Anarchism and in Foucault's Thought

As anarchists as Foucault had the consequences of power in subject constitution as their research goal. They don't examine it as result of econmics nor social contract one. They research it empirically without methaphisics, historicism, idealism or hegelianism. They use the same object and the same method in both works. They find the domination and exploration of man by man was made by power and conclude that only with struggling against power would be possible the men's freedom with the social organisation fully democratic and libertary one. Foucault focused your researches on subject subjetivity constitution as resultant of relations between truth and power and he proposes as solution the reissue of self care, in which the subject, being the master of himself, faces the power. The anarchists postulated the elimination of power in all of human relations for the same reasons. These two solutions add due the same methodology in analysis of the same research goal. For this, the question of domination of subject by the relations of power is, before of all, an epistemic question. That is the conclusion of analysis of power, in subject condition and constitution, depends the way how it was analysed as research goal and with such methedology.

KEYWORDS: ANARCHISM, EPISTEMOLOGY, POWER






            A Questão Epistemológica

            O objeto de pesquisa, para os anarquistas e Foucault, foi a constituição do sujeito resultado do exercício das relações de poder.
            Recusaram suposições de que existiriam outras causas que fizeram surgir o poder.  O poder não foi examinado por eles como resultado da economia, do homem ser o lobo do homem, de contratos sociais ou legislações jurídicas. Rejeitaram qualquer tipo de metafísica, historicismo, idealismo, hegelianismo. Foram empiristas na sua metodologia. Analisaram o poder como ele se manifesta que são as estratégias e práticas de dominação e exploração do sujeito. E a partir dessa análise focaram ele pode enfrentá-lo para deixar de ser sujeito tornando-se o mestre de si mesmo.
             O que ocorreu foi um equívoco na análise do poder como objeto de pesquisa quando não se estudou como ele existe na sua prática. Substituíram a análise de como o poder existe, se manifesta e age por suposições metafísicas e a-históricas do que é o poder.
            É de suma importância evidenciar esse engano porque suas consequências foram grandes na dominação do homem pelo homem. É exatamente a partir desse mal-entendido, na análise do poder, que aqui vamos analisar suas consequências teóricas e políticas.
            Foucault assim descreveu sua pesquisa: “Não é, pois, o poder, mas o sujeito que constitui o tema geral de minhas pesquisas. É verdade que fui levado a interessar-me de perto pela questão do poder”. [1]
            Analisar as práticas do poder como um objeto de pesquisa sem ser resultado de outras causas aproxima os anarquistas com o pensamento de Foucault. O que os diferencia é que, em alguns momentos, examinam diferentes aspectos dessa mesma questão. Mas o essencial é que, tanto para Foucault como para os anarquistas, o exercício do poder é o fato central para explicar a sujeição na dominação do homem pelo homem. E, para ambos, a solução é excluí-lo em todas as suas formas e suas práticas. É isto que chamamos de anarquismo.   
                                                          
            O poder só existe onde e como exerce suas ações. Não tem uma causa porque ele é a causa e não o efeito. A dominação é a causa. Ela é uma prática. Ocorre por quem pode exercê-la pela força e ou nas estratégias de criar dispositivos [2] suficientes para dominar o próximo. Por isso os anarquistas recusaram todos os tipos de governos porque são exercidos para executar a dominação e exploração do sujeito.
            Foucault descobriu como a vontade de verdade através de seus discursos é uma dessas estratégias. Suas pesquisas do que é e como se exerce o poder, o levou a uma terminologia e conceitos próprios como discurso, episteme, sujeito. Quer dizer, como o discurso, resultado das epistemes [3] de cada época, se dizendo verdade absoluta, gerou o sujeito.
            Já os anarquistas chegaram à mesma conclusão, por outro caminho, que foi diagnosticar o autoritarismo disseminado na sociedade como a causa principal da sujeição. Sébastien Faure definiu assim o anarquismo: “Quem negar a autoridade e a combater é um anarquista”. São focos diferentes do mesmo objeto que mais se somam do que se eliminam.
            Em ambos a reação ao poder não é se tomar o poder porque o seu exercício do poder, seja por quem for o sob que razão, o obrigará a servi-lo senão não o está nem tomando nem o exercendo. Seja que pretexto for, ao se tomar o poder, tem de executá-lo senão o perde e, na maioria das vezes, o tem de exercer como uma ditadura. A história tem mostrado isso monotonamente.
            Para eliminar a dominação do homem pelo homem, tem de se substituir as relações de poder por relações humanas sem exercício de poder. Alterar a base que sustenta a superfície. É no resultado do poder no sujeito sujeitado que se dá o enfrentamento político. É nesse campo que primeiro se identifica onde ocorrem as relações de poder e as substitui por relações humanas sem o exercício do poder. Não é no atacado é no varejo que se age. Porque, neste caso é o varejo, a microfísica do poder, que forma o atacado.  Ou seja, eliminar o alicerce para o seu edifício ruir. E isto só foi possível porque o analisaram como a causa e não o efeito. O poder não é um epifenômeno, é o fenômeno. Ele se manifesta em rede formando uma malha que envolve toda a sociedade. Transita em todos nós para manter-se e existir. Se todos nós não nos tornarmos pequenos ditadores ele não consegue ser exercido porque não consegue circular em rede em toda a sociedade. Tanto nos anarquistas como em Foucault foi, no sujeito, o centro da análise na qual o poder se exerce. E só com sua recusa de exercer o poder se tornam preparados para enfrentá-lo modificando suas relações de poder em relações humanas sem exercício de poder.
             Foucault percebeu que sem uma transformação do sujeito não se podia acessar o conhecimento sem ser vítima do poder. Ele chegou a essa conclusão com a descoberta do cuidado de si ser eliminado no ato de conhecer e remeteu-se em A Hermenêutica do Sujeito e A Vontade de Verdade, aos estóicos e cínicos como um caminho para o enfrentamento do poder.
            Nas suas pesquisas históricas das relações de poder, descobriu que tinha ocorrido uma alteração epistemológica de como se acessava a verdade desde o início da filosofia. Na Grécia antiga o cuidado de si subordinava o conhece-te a ti mesmo. Isso quer dizer que, antes do ato de conhecer o homem tinha como pré-requisito, o cuidado de si, que significa um treinamento para a defesa do que é o humano, como a meta fundamental da sua liberdade e, portanto, subordinava o conhece-te a ti mesmo no ato de conhecer. O conhece-te a ti mesmo foi, nesse contexto, direcionado para ser um método para se acessar o conhecimento.
                Mas o cuidado de si, como acontecia na Grécia antiga, foi eliminado no que Foucault chamou de momento cartesiano. Descartes, no seu método a partir da sua máxima, penso logo existo, eliminou o cuidado de si no ato de conhecer. Depois Foucault disse que usou o nome de Descartes, mas não necessariamente o estava colocando como o vilão da história. O mais importante foi diagnosticar o momento que ocorreu no racionalismo que depois se desenvolveu no iluminismo e permitiu cada vez mais, uma cisão da razão na eliminação do homem como ser humano no ato de conhecer. O mais importante era mostrar esse momento ele o chamou, de uma forma de geral como quase uma brincadeira, de cartesiano.     

Para começar, consideremos a situação, se quisermos, na direção ascendente. O corte não se fez bem assim. Não se fez no dia em que Descartes colocou a regra da evidência ou descobriu o cogito, etc. Havia muito tempo já se iniciara o trabalho para desconectar o princípio de um acesso à verdade unicamente nos termos do sujeito cognoscente e, por outro lado, a necessidade espiritual de um trabalho do sujeito sobre si mesmo, transformando-se e esperando da verdade sua iluminação e sua transfiguração. Havia muito tempo que a dissociação começara a fazer-se e que um certo marco fora cravado entre esses dois elementos. E esse marco, bem entendido, deve ser buscado... do lado da ciência? De modo algum. Deve-se buscá-lo do lado da teologia. A teologia (essa teologia que, justamente, pode fundar-se em Aristóteles [...] e que, com Santo Tomás, a escolástica, etc., ocupará, na reflexão ocidental, o lugar que conhecemos), ao adotar como reflexão racional fundante, a partir do cristianismo, é claro, uma fé cuja vocação é universal, fundava, ao mesmo tempo, o principio de um sujeito cognoscente em geral, sujeito cognoscente que encontrava em Deus, a um tempo, seu modelo, seu ponto de realização absoluto, seu mais alto grau de perfeição, e simultaneamente, seu Criador, assim como, por consequência, seu modelo. A correspondência entre um Deus que tudo conhece e sujeitos capazes de conhecer, sob o amparo da fé é claro, constitui sem duvida um dos principais elementos que fazem [fizeram] com que o pensamento ou as principais formas de reflexão – ocidental e, em particular, o pensamento filosófico se tenha desprendido, liberado, separado das condições de espiritualidade que os haviam acompanhado até então, e cuja formulação mais geral era o princípio da epiméleia heautoû. (FOUCAULT escreveu em A Hermenêutica do Sujeito, publicada em São Paulo pela editora Martins Fontes em 2011 na página 26).

            Embora até agora tenhamos mostrado como Foucault recusou o racionalismo de Descartes, essa afirmação, nesse excerto, é que estabelece como o cuidado de si foi eliminado, a partir daí, de como se acessa a verdade.                                                   
            Ou seja, não se podia substituir o que é humano pelo raciocínio e, talvez até pela matemática e taxonomia, no sujeito cognoscente, sem perder sua humanidade e liberdade.
            Se o penso logo existo foi privilegiado como fundamento de como será gerado o conhecimento, foi criado um método em que tudo pode ser analisado e explicado nos exercícios da razão, ou seja, na consciência sem o corpo ou nada que seja humano além da razão. E a consequência é que qualquer um, sem outro requisito desde que não seja louco, seguindo esse método pode acessar o conhecimento. O humano foi substituído por uma parte do que é ser humano que é o raciocínio, mas sem ele.  Eliminou-se o humano no ato de conhecer. Quer dizer, no momento cartesiando, se eliminou, epistemológica e politicamente, o próprio homem o reduzindo o ser uma consciência aprisionada em um racionalismo. Porque o humano é que está implícito no cuidado de si quando foi criado pelos espartanos.
O cuidado de si, como está descrito no Primeiro Alcíbiades de Platão, surgiu quando um espartano, ao ser perguntado por que eles não cultivavam suas terras as deixando esse encargo para os hilotas, respondeu que precisavam cuidar de si.
Para melhor entender esse desdobramento entre ética e epistemologia, temos de começar quando Foucault então fez uma ressalva: o cuidado de si não foi uma premissa inicialmente filosófica.

Primeiro se é verdade que é com Sócrates, e em particular no texto Alcibíades, que assistimos à emergência do cuidado de si na reflexão filosófica, não devemos contudo esquecer que o principio ‘ocupar-se consigo’ – como regra, como imperativo, imperativo positivo do qual muito se espera – não foi, desde a origem e ao longo de toda a cultura grega, uma recomendação para filósofos, uma interpelação que um filósofo dirigia aos jovens que passam pela rua. Não foi uma atitude intelectual, nem um conselho dado por velhos sábios a alguns jovens demasiado apressados. Não, a afirmação, o princípio ‘é preciso ocupar-se consigo mesmo’ era uma antiga sentença da cultura grega. Uma sentença, em particular, lacedemônia. Em um texto, aliás tardio pois é de Plutarco, referente porém a uma manifestamente ancestral e plurissecular, Plutarco retoma uma palavra que teria sido de Alexândrides, um lacedemônio, um espartano, a quem um dia se teria perguntado: mas afinal, vós, espartanos, sois um tanto estranhos; tendes muitas terras e vossos territórios são imensos ou, pelo menos muito importantes; por que não os cultivais vós mesmos, por que os confiais a hilotas? E Alexândrides teria respondido: simplesmente para podermos nos ocupar com nós mesmos. (FOUCAULT escreveu em A Hermenêutica do Sujeito, publicada em São Paulo pela editora Martins Fontes em 2011 na página 30).

            O cuidado de si foi uma transformação inicialmente física que se originou em um treinamento militar para os espartanos não serem dominados e escravizados por outros povos. Teve uma origem militar. Mas depois se tornou principalmente cognoscente e subjetiva e mais tarde ampliado, epistemológica e politicamente com os estóicos e cínicos, para todos não serem escravos não só dos outros mas, principalmente, não serem escravos de si mesmos.

Já que, para os gregos, liberdade significa não-escravidão – o que é, de qualquer forma, uma definição de liberdade muito diferente da nossa -, considero que o problema já é inteiramente político. Ele é político uma vez que a não-escravidão em relação aos outros é uma condição: um escravo não tem ética. A liberdade é, portanto, em si mesmo política. Além disso, ela também tem um modelo político, uma vez que ser livre significa não ser escravo de si mesmo nem de seus apetites, o que implica estabelecer consigo mesmo certa relação de domínio, de controle, chamada de arché – poder, comando. (FOUCAULT em uma entrevista A ética do cuidado de si como prática da liberdade publicada em Michel Foucault Ditos e Escritos V   Forence Universitária no Rio de janeiro em 2006 na página 270).

            Quer dizer, no momento cartesiando, se eliminou, epistemológica e politicamente, o próprio homem o reduzindo o ser uma consciência aprisionada em um racionalismo. É esse equívoco que depois vai ser desenvolvido também pela fenomenologia de Husserl. E nesta razão cindida, devido ao acesso equivocado do saber ao eliminar o cuidado de si, que era o humano no ato de conhecer, suas verdades vêm das coisas e se exerce sobre eles.  É então que a vontade do saber se associa a vontade de poder. Um saber que se imagina dominando as coisas é dominado por quem o exerce. Algo semelhante ao poema de Goethe sobre o aprendiz de feiticeiro que desencadeou uma força na qual ele sucumbe nela como ocorreu com a bomba atômica e outras atrocidades efetuadas pelo exercício do poder com a eliminação do cuidado de si no ato de conhecer. E que também foi ilustrado por Mary Shelley, no seu romance, Frankenstein.
            Mas o mais grave foi que o sujeito inicialmente fica escravo das coisas que pesquisa em uma aparente liberdade epistemológica e dos homens nomeados como cientistas seus gestores. Mas depois o sujeito cognoscente pode ser e foi objeto de si mesmo com o surgimento das ciências humanas. Ele passou a ser analisado como uma coisa e, portanto, as dominações das coisas se estenderam a dominação, pelo saber, do sujeito ao se tornar um duplo empírico transcendental.
            O que se requisita portanto, tanto nos anarquistas com em Foucault, é a reedição do cuidado de si como enfrentamento do poder. Os anarquistas podem chamar o  cuidado de si, que é sinônimo de  exercício de liberdade sem o domínio do governo e sem Estado, de anarquismo. 
            Portanto o cuidado de si em Foucault não é só epistêmico é também político e revolucionário. E podemos dizer até que o cuidado de si é epistêmico, político, revolucionário e anarquista.
              Quando Foucault estudou, primeiro aos estóicos e depois os cínicos, nos seus dois últimos cursos ministrados no College de France, se assemelha às reflexões de Han Hyner [4] sobre a importância dos estóicos para os anarquistas. Em Foucault a reedição do cuidado de si insere o homem em uma ética na qual o humano prevalece nele como o mestre de si para não ser escravo dos outros nem de si mesmo e, assim criar, sem universais, sua ética e estética da existência.
            Horkheimer publicou em 1937 Teoria Tradicional e Teoria Crítica e mostrou que a teoria tradicional, relacionada com pensamento de Descartes, excluía o social e postulou a solução com o que chamou de Teoria Crítica na qual inseria o social, ou seja, o homem.
            Nietzsche, nas suas reflexões sobre o Apolíneo e o Dionisíaco na sua Origem da Tragédia também pode ser lida, como uma cisão da razão semelhante à eliminação do cuidado de si do conhece-te a ti mesmo.

                                   
            As  Consequências 

            Ser contra a todas as formas de dominação do sujeito pelos exercícios de poder tornou-se uma teoria chamada anarquismo, que foi, e está cada vez mais, se alastrando nas sociedades.
            Um número cada vez maior de pessoas recusa as autoridades, se tornam mestres de si mesmas e se associam entre si, em relações humanas sem o exercício de poder, para mudar aquilo que lhes indigna. E então, gradativamente, essas micro-ações diretas, vão eliminando os micropoderes e termina organizando a sociedade sem exercícios de poder. Essa é que é uma real revolução e não novas dominações com o nome de revoluções.
            Os anarquistas efetuam, no aqui e agora, várias experiências para se estabelecer relações humanas sem exercício de poder. Essas experiências são as práticas, em uma espécie de laboratório, de sua ciência política. Sua ação tem dois aspectos que se combinam: a crítica a qualquer tipo de exercício de poder do homem pelo homem e experiências de relações sem exercício de poder em heterotopias anarquistas. Eles executam, em seus pequenos espaços e na sua relação diária com os outros, já uma revolução. Eles expulsam de si qualquer tipo de autoritarismo e se transformam assim em anarquistas na teoria e na prática. Criam cada vez mais novas formas de ser e viver sem exercícios de poder nas escolas, nas famílias, nas relações amorosas e em todas as relações humanas.  Criam e apoiam todas a libertações do sujeição que lutam todas as formas de sujeição.
             Os que querem tomar ou participar do poder não fazem essa transformação pessoal como os anarquistas e nem criam heterotopias ou experiências de relações sem poder. Eles visam manter o poder do Estado e do governo como são e não abrem mão de nenhum poder pessoal em sua vida, teoria e pensamentos.
             Os anarquistas trazem no corpo e nas suas ações a revolução, se possível, em todos locais, em todas as horas e todos os dias E, ao mesmo tempo, lutam para disseminar, pacificamente, em toda sociedade o seu exemplo e sua teoria. Daí os temas recorrentes no anarquismo de autogestão, horizontalidade de organizações substituindo verticalidades, ação direta etc. E cada vez mais pessoas aderem e assim se tem mudado o mundo. Daí tem surgindo, cada vez mais, lutas setorizadas sem partidos e sem governos.
            Partidos e governos são levados a reboque, porque, na sua única necessidade de   manter  e  se conservarem no poder, cedem.
                Os partidos foram resultados de uma estratégia das relações de poder no que foi chamado de democracia. Todos eles se organizam para tomar o poder. Criam suas propostas para atrair, os que acreditarem nelas, para os elegerem nos jogos de poder chamados de democracia. Nasceram para limitar as lutas sociais violentas em uma arena política criada por quem domina no poder. Imposta essa regra  todos visam tomar uma pequena ou grande fatia do governo ou ficar tentando a cada eleição.
             Comem as migalhas, às vezes suculentas, mas migalhas se comparadas com o banquete de quem domina todos e exerce o governo. Eles se elegem como se auto determina que é ser o intermediário profissional entre o povo e o poder. Procuram tomar todas as ações populares de libertação para ele.  Eles se impõem, com várias artimanhas, para se apossar dos movimentos sociais e, dizendo que os está liderando e tomar para si o poder, e uma vez no poder, encerra sua função. Por isso, seja qual for suas propostas, elas nascem mortas porque vão, de acordo em acordo com forças maiores que a deles em benefício próprio, fazendo o jogo do poder e assim neutraliza tudo que pode mudar a realidade, no aqui e agora, para se manter sempre no poder. Só cede quando o povo já conquistou o que postulava e aí vai a reboque. E o povo já percebeu que a maioria do que eles o dizem que vão fazer jamais fazem. Se eles não comprarem quem vai votar neles, sugerindo que vão lhes empregar e proporcionar privilégios, não se elegem. Quando eles fazem alguma coisa a favor de uma maior liberdade é sob a pressão das ações de grande parte da população, sem partido e sem poder, que ele não pôde dominar, se apropriar e neutralizar. Foram obrigados a ceder.
            Quem podia imaginar que partidos burgueses, socialistas e comunistas iriam colocar nas suas agendas e nos seus cartazes um negro, uma mulher e uma pessoa que ama pessoas do mesmo sexo? Todos esses partidos foram sempre contra a liberdade das mulheres, das relações sexuais livres, da luta contra o racismo. Não davam muita ênfase, mesmos os socialistas, as lutas raciais porque tinham as viseiras que era a economia que explicava o poder. Devido a essa curiosa e equivocada maneira de pensar só viam tudo como luta de classes. Logo negros, mulheres, crianças, loucos, pacientes de médicos, prisioneiros não eram vistos em sua cegueira política e só era  focado no operariado. Fora disto não existia sujeição porque eram politicamente reduzidos a manipulação dos operários ignorando e assim apoiando como pensava a população de acordo com os discursos e comportamentos de dominação impostos pela Igreja Católica e pela burguesia. Daí não iriam lutar a favor dos párias da sociedade que eles mesmos não aceitavam os seus comportamentos e muitos menos contrariar os operários que muitas vezes dominavam suas mulheres, filhos, e também absorviam uma moral sexual da sociedade burguesa. Nunca contestaram nem a mentalidade burguesa e pequeno burguesa nem a domínio moral e comportamental da Igreja Católica ou qualquer religião vigente. Não perceberam que também os operários são resultado de relações de poder porque sem se ter poder  não se tem nem escravos nem operários.
             Por isso que a ação anarquista tem mostrado que é mais eficiente em mudar, no aqui e agora, a sujeição do sujeito libertando milhões de pessoas de grandes sofrimentos. Enquanto isso os que se abrigam nos partidos fazem sua carreira de político profissional, muito comportadamente, para exercer o poder para ganhar e amealhar capital.
            Estamos vendo, gradativamente, o desaparecimento do poder sendo substituído por organizações sem relações de poder. Já ocorreu com a libertação das mulheres e sua igualdade com os homens, das vítimas do racismo, a abolição da palmatória e dos castigos dos alunos nas escolas e outras vitórias contra os poderes que vão perdendo terrenos, com a prática libertária de eliminar o poder cortando os seus tentáculos. Ou seja o expulsando dos corpos e dos locais onde eram exercidos. Criando alternativas a comportamentos, áreas e instituições sem exercício de poder.

       Proporei, como ponto de partida, tomar uma série de oposições que se desenvolveram nesses últimos anos: a oposição ao poder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre seus filhos, da psiquiatria sob os doentes mentais, da medicina sobre a população, da administração sobre a maneira como as pessoas vivem.
       Não basta dizer que essas oposições são lutas contra a autoridade; deve-se tentar definir mais precisamente o que elas têm em comum. (...) São lutas anárquicas. (Foucault em O sujeito e o Poder, publicado em Michel Foucault Ditos e Escritos IX pela editora Forense Universitária no Rio de Janeiro em 2014 nas páginas 121, 122).


            Gradativamente muitos, e não só os anarquistas, perceberam que o poder consome totalmente, em todos os detalhes, o corpo e a mente das pessoas na quais ele se exerce. Interfere e domina porque dita todas as suas ações: como se veste, fala, anda, pensa, pinta ou não o seu corpo. O poder possui o homem em corpo e alma. A alma é sua subjetividade que, nesse sentido, é a prisão do corpo. Não é só a força de trabalho que é explorada pelo exercício das relações do poder no corpo, mas todos os gestos e expressões corporais no que Foucault chamou de anatopolítica e depois acrescentou biopoder no curso Nascimento da biopolitica que ministrou no Collège de France em 1979.
            Em uma palestra, que foi ministrada em Salvador na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, que foi primeiramente traduzida e publicada em português pela revista anarquista Barbárie em 1981, Foucault diagnosticou que a dominação das relações sexuais é resultado da biopolítica:

        A vida entra no domínio do poder: mutação capital, uma das mais importantes, sem dúvida, na história das sociedades humanas. É evidente que se pode ver como o sexo pôde se tornar, a partir desse momento, quer dizer, a partir justamente do século XVIII, um peça absolutamente capital, pois, no fundo, o sexo é muito exatamente situado no ponto de articulação entre as disciplinas individuais do corpo e as regulações da população. (...) De outro lado, porém, o sexo é que garante a reprodução das populações. É com o sexo, com a política do sexo que podemos mudar a relação entre natalidade e mortalidade. De todo modo, a política da vida, que se tornou tão importante no século XIX. O sexo é o gonzo entre a anatomopolítica e a biopolítica, este está na encruzilhada das disciplinas e regulações. E é nessa função política de primeira importância para fazer da sociedade uma máquina de produção. (Foucault em As malhas do Poder, em Michel Foucault Ditos e Escritos VIII, publicado pela editora Forense Universitária, no Rio de Janeiro em 2012 nas páginas 180,181).

            Os anarquistas e Foucault perceberam que também os prazeres do corpo nada têm a ver com o sexo, é uma relação política de dominação no exercício do poder que incluiu os prazeres sexuais.  Na biopolítica a dominação é executada na capacidade humana de se reproduzir e assim expropriou os prazeres sexuais de sua liberdade e os vinculou aos interesses do poder na exploração dos corpos também através de fabricação dos seres humanos. Que, em grande parte, deveriam ser criados, pelos pais obrigados pela força das leis, para serem, principalmente, soldados, operários e camponeses. Um exercício do biopoder, não mais só a dominação individual anatomopolítica, mas da espécie no controle absoluto de sua reprodução, saúde e vida. Assim sendo o poder se exerceu também como o sujeito utiliza o seu próprio pênis e o seu sêmen. 
            Essa invasão estatal, policial e política nos prazeres eróticos foram vencidas pelos anarquistas com o uso apenas de duas palavras: amor livre.[5] Ou seja, a única relação sexual sem exercício de poder é o amor livre. Se os prazeres sexuais são consensuais entre pessoas adultas nada pode interferir, nem o Estado, leis, psicologias ou psiquiatrias, genética ou endocrinologia, religiões, ou seja, que discursos existam para dominá-los.        
            A história tem mostrado que essa ação direta tem sido a mais eficiente para se chegar a uma democracia plena e um socialismo libertário. Pode parecer estranha inicialmente, por ser muito diferente de tomar o poder para exercê-lo. Não é fácil expulsar o fascismo, ou seja, uma suposta necessidade do poder em todas as estâncias da vida, porque ele transita em nosso corpo em rede e só se pode mudar a dominação de si e dos outros quando bloqueamos a passagem do poder pelo nosso corpo, subjetividade e ações, ou seja, nos tornamos anarquistas.
             







[1] O Sujeito e o Poder, em Michel Foucault Ditos e Escritos IX, editado pela Editora Forence Universitária no Rio de Janeiro em 2014, na página 119. Sujeito, para Foucault, é o sujeito sujeitado.

[2] Inicialmente Foucault focou sua descoberta no discurso, resultado da episteme de cada época, e sua relação com o poder. O discurso é o que é dito. Entretanto existe o não dito, ou seja, o dispositivo: “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos”. Sobre a História da Sexualidade entrevista que Foucault deu Alain Grosrichard traduzida e publicada em Microfisica do Poder de Roberto Machado que foi editado pela editora Graal, Rio de Janeiro em 1978, sexta edição, na página 243.
[3] São relações recorrentes que aparecem nos discursos, não percebidos por quem os enuncia, como se fossem hábitos de pensar. Portanto podem ser também descritos como um a priori histórico vigentes em cada época. Ele as analisou no Renascimento, Idade Clássica e Modernidade em As Palavras e as Coisas publicado em 1966.
[4] No livro de Han Hyner Manual Filosófico do Individualista publicado no Brasil pela Editora Germinal do Rio de Janeiro em 1966.

[5] Postularam isto ainda no século XIX  de forma pioneira nos meios operários sem temer enfrentar a moral sexual dominante entre eles imposta pela burguesia. 

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

A Causa Epistemológica do Surgimento do Anarquismo


            A questão fundamental está na origem epistemológica da escolha do objeto de pesquisa: os anarquistas e Foucault escolheram analisar o poder e seus desdobramentos e os outros teóricos focaram na economia, nos contratos sociais e outros objetos de pesquisa para explicar o poder e as sociedades. E a história tem provado que ocorreu aí um equívoco nesse deslocamento do poder para outra causa que não fosse o próprio poder para diagnosticar uma sociedade e como mudá-la.
            Sendo o foco de pesquisa o poder, para os anarquistas e Foucault, eles conseguiram efetuar práticas cuja finalidade era substituir relações de poder por relações humanas sem relações de poder.
            A disseminação revolucionária da recusa de ser perseguido por todos fez que vários grupos de pessoas semelhantes se associassem e lutassem para se livrar da sujeição. E estas lutas específicas mostraram ser eficientes politicamente e ter tido muitas vitórias no aqui e agora, como as lutas das mulheres, lutas contra o racismo etc. Essas lutas foram executadas de formas libertárias, sem partidos, se dominadores, chefes e possuidores dessas lutas. Os partidos que inicialmente combateram essas lutas ficaram diante da quantidade de todos as aceitarem e participaram muita vezes o fazerem tentar primeiro tomar para eles dominarem e não conseguindo porque todos já desenvolveram também a recusa deles vão a reboque no seu crepúsculo político.
              O que se observa é que grande parte das lutas sociais possuem semelhanças com o que foi disseminado pelas teorias e reflexões anarquistas e foucaultianas de se mudar o mundo. Os anarquistas criaram escolas libertárias que se iniciou como a eliminação da palmatória, também a eliminação da pena de morte em vários paises entre outras lutas de libertação. Enfim tudo que muitos anarquistas e depois Foucault postularam teve grande influência em melhorar a vida dos loucos, dos presos, dos excluídos de todos os tipos. Enquanto isso, os equivocados epistemologicamente em como analisar o poder e gerar uma filosofia política que libertasse cada vez mais pacificamente, na maioria das vezes milhões de pessoas, ficaram ossificados nos seus partidos indo a reboque pelas lutas anárquicas de vários movimentos sociais e políticos sem amos nem chefes. Esses partidos em muitos paises viraram apenas empresas para que seus chefes e associados ganharem dinheiro. O que todos estão percebendo é que podem mudar o mundo sem tomar o poder como suas lutas libertárias naquilo que os oprime e indigna. Sem utopias, profecias e no aqui e agora.
            Será que vocês, anarquistas, ainda não perceberam que as influências de suas idéias e práticas libertárias foram e são enormes e tem sido cada vez mais a prática política que dá certo e por isso está em todos os lados? E que o pensamento de Foucault está também sendo, cada fez mais, referência constante nos mais variados centros de pesquisas sobre as mais variadas formas de análises sociais, jurídicas, psicológicas e políticas? Será que vocês estão cegos, surdos e mudos? Será que não ouvem as risadas de Bakunin, Malatesta e de todos eles diante da falência de todos os autoriatismos?
            Sugiro lerem Anarquia Viva. Política Antiautoritária Da Prática para a Teoria
de  Uri Gordon.   https://colectivolibertarioevora.files.wordpress.com/2015/09/anarquia-viva.pdf

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Manifesto Anarcofoucaultiano



Ricardo Líper

Este manifesto se resume em um postulado: quando você não estabelece relações de poder e, ao contrário, tem sempre relações humanas sem o exercício de poder você está mudando o mundo. Se muitos agirem como você muda-se o governo e o Estado, a exploração e tudo que nos indignamos. E todos nós seremos muito felizes. Por seu exemplo e  com sua crítica constante das relações de poder tudo será mudado. Ser libertário é a prática diária de relações humanas sem exercício de poder. 

O que esse manifesto vai detalhar é exatamente mudar as relações de poder para relações humanas sem relações de poder em todas as instâncias. Pesquisar, experimentar e criar organizações de relações sem exercício de poder desde as famílias, escolas, o amor, o trabalho, o conhecimento e todas as relações humanas. É uma nova maneira de se mudar o mundo. De baixo para cima e não de cima para baixo: mudando a microfísica do poder para a microfísica sem o exercício de poder. E é ai que o pensamento libertário se encontra com o pensamento de Foucault.  Foucault foi libertário. Ser libertário é ser livre e facilitar para que todos sejam livres. É o oposto do dominador cuja liberdade é apenas a dele. É uma nova forma de se fazer política.  Com que outro nome se diga, é mudar o mundo no aqui e agora, sem utopia nem profecia, pacificamente, mudando opiniões para mudar mentalidades. E, além da sistemática e constante, a crítica a dominação e os dominadores e com sua ação libertária pessoal no cotidiano. Quem tem razão não precisa ser violento. Ao contrário, a ideia que é eficiente, vencerá exatamente por não ser violenta nem criminosa. Deixemos isso para os dominadores. Bater, explodir, espancar, proibir, aprisionar, executar e fazer chorar é com eles. E ninguém gosta disso e é por isso que os libertários vencem por essa obviedade de sua teoria: nada impor. E assim suas práticas são vitoriosas porque tem provado, em todos os lugares do mundo, principalmente nos mais organizados, ser a mais eficiente nada impondo nas famílias, nas escolas, no fim da censura de artes e pensamentos etc. Se você observar, em quase todo mundo, o número de libertários é muito grande e aumenta a cada instante. Cada vez mais surgem libertários em todos os lugares e sob vários nomes e movimentos sociais. 

            A Teoria

            1 – Unir o anarquismo e o pensamento de Foucault

            Este manifesto não visa dizer que Foucault foi anarquista. Ele ter sido ou não anarquista é irrelevante. Entretanto, muitos estudiosos, tanto do anarquismo como de Foucault, especulam sobre a relação entre o pensamento de Foucault e o anarquismo. Mas não se precisa obrigar Foucault a ser anarquista. O pensamento de Foucault é uma caixa de ferramentas importante para os anarquistas. Acrescentar suas reflexões ao anarquismo pode servir para os anarquistas utilizarem o que Foucault desenvolveu em suas pesquisas e descobertas. O meu objetivo, portanto, é unir o pensamento dos anarquistas com o de Foucault.
            A finalidade de unir o pensamento de Foucault com o anarquismo é pelo potencial dos dois de mostrar que, mudando a si mesmo, pode-se mudar o mundo com todos e para todos. Os anarquistas estudam muitos problemas sociais, morais e políticos, que Foucault também analisou, cujo principal é o poder e a sujeição do sujeito através da sua objetivação e subjetivação e como escapar dessa dominação. E ambos chegaram, cada um com focos diferentes, às mesmas conclusões e sugestões de práticas libertárias para se enfrentar o poder. A diferença entre Foucault e os anarquistas é o foco na origem da dominação. Foucault fez suas pesquisas sobre a dominação do sujeito na relação da verdade com o exercício do poder. Daí a objetivação, subjetivação, individualização e totalização na constituição do sujeito. E alguns anarquistas, que foram influenciados pelo anarco-sindicalismo, se centralizaram nas lutas de classes. Entretanto, os anarquistas individualistas, principalmente, dão ênfase à liberdade pessoal como luta política.  
            Não está errado o anarco-sindicalismo, mas não é só isso. Na realidade, as lutas de classes são apenas um dos aspectos da questão de dominação do homem pelo homem. Primeiro vem a dominação nas relações de poder para se instalar a exploração e não o contrário ou, se quisermos, vêm sempre juntas. O que une os anarquistas com o pensamento de Foucault é a analítica do poder em ambos e como enfrentá-lo sem se tornar um novo senhor.
            A novidade de Foucault é que ele não se contentou com o conceito de ideologia no modelo marxista de situar o discurso falso de uma classe social burguesa, visando a exploração, em oposição ao socialismo científico marxista, sendo este último verdadeiro. Foucault colocou como a verdade, em grande parte, é associada ao exercício do poder. O que ele chamou, em algum momento de suas reflexões, de saber-poder.
            Foucault, inicialmente, analisou o surgimento da verdade como resultado de epistemes e discursos no que definiu como uma arqueologia, e o que chamou de genealogia, que  tratou da relação entre verdade e poder. E com essa associação, chegou a diagnosticar como surgiu, na atualidade, o sujeito dominado no processo de objetivação e subjetivação efetuado pelas verdades, principalmente, das ciências humanas. Isto é, a dominação com o aprisionamento do corpo pela heterodisciplina  e, principalmente, com a dominação na constituição da subjetividade do sujeitado. Quer dizer, Foucault não se opôs ao tema anarquista principal, que é a dominação do homem pelo homem pelo exercício do poder, muito pelo contrário, procurou saídas para essa dominação e é isso que também sempre fizeram os anarquistas. Aqui, baseado em ambos, se contrapõe a heterodisciplina, vinda de outro para dominar o próximo, à autodisciplina, que vem de si mesmo. Para isto, em Foucault, no cuidado de si e na  leitura dos estóicos, epicuristas e cínicos está a solução.
            Foucault apenas analisou um outro aspecto dessa dominação que foi o papel da verdade-discurso na dominação e criação do sujeito nas relações de poder. Não sei se Foucault não se associou aos anarquistas organizados de sua época por estarem influenciados por conceitos como natureza humana, que seria a-histórica, e o monismo da luta de classes com ênfase na economia política de David Ricardo e Adam Smith que, recém criada, influenciou muito Marx. E, por outro lado também, influenciou o anarco-sindicalismo. O anarquismo é não aceitar a dominação do homem pelo homem e por isso se foca na abolição do poder em todas as suas instâncias. Mas esse princípio se mesclou como outras teorias. O debate de Foucault com o anarquista Chomsky pode ser uma evidência do que estou aqui especulando. Em minha opinião, o pensamento de Foucault é mais anarquista do quê o de muitos anarquistas.  Mas não sou dono nem do anarquismo nem de Foucault, só faço propostas e tento praticá-las para ver se funcionam. O resto são discursos e nada mais... Que, como a poeira,  o vento e o tempo, levam...
            Portanto a relação do anarquismo com Foucault é que Foucault forneceu ao anarquismo um instrumento útil com sua análise da sujeição e dominação na objetivação, subjetivação, individualização e totalização do sujeito. Esses conceitos estão colocados em O Sujeito e o Poder que ele escreveu em 1982, que é um texto básico para a união entre o anarquismo e Foucault. No meu entender, é o manifesto político de Foucault. Em toda sua obra ele fornece ao anarquismo muitas análises de formas de dominação do sujeito. Essas análises são de imensa importância para o anarquismo. Sua crítica ao liberalismo no seu curso do Collège de France Nascimento da Biopolítica, com o conceito de homo economicus e de todas as estratégias de exercício de poder no liberalismo, é um diagnóstico de suma importância para mostrar uma estratégia de dominação por trás da suposta liberdade do liberalismo. A mesma coisa, e fundamental no seu pensamento, foi mostrar o poder que cria e produz conhecimento. E é com o conhecimento que também se manipula a dominação do sujeito.
            Daí o enfrentamento agora é dotar o sujeito de uma teoria de como escapar da sujeição e é isto que estamos aqui sugerindo e colocando. Em Foucault foi a reedição do cuidado de si e entre os anarquistas, também com outros nomes como anarco-individualismo, a mesma coisa. Ou seja, mudar a si mesmo de uma mentalidade fascista para uma mentalidade libertária na qual a questão central é não se deixar dominar nem dominar o próximo.
            Este manifesto anarcofoucaultiano visa unir o pensamento dos anarquistas e de Foucault. Porque, devidamente somados, incluir no anarquismo a reedição do cuidado de si, como sugeriu Foucault, para enfrentar o poder. E assim mudar a si mesmo, com as sugestões dadas pelos estóicos, epicuristas e cínicos, como foram lidos por Foucault em A Hermenêutica do Sujeito e em Hyner no Manual Filosófico do Individualista recusar e combater aquilo que nos indigna e assim mudar o mundo.
            E, assim sendo, elaborar uma prática política e um estilo de vida, criando mestres de si mesmos e uma estética da existência que tem, como consequência e a principal finalidade, mudar a si mesmo para assim mudar as sociedades com práticas de uma vida não-fascista, quer dizer, relações sem poder que neutralizam as relações de poder. E então, mudar o Estado e o governo, eliminando deles as relações de poder. Portanto, enfrentar e mudar o fascismo efetuado nas relações de poder nas sociedades em que vivemos. Não se visa aqui reduzir o pensamento de Foucault ao anarquismo nem o anarquismo ao pensamento de Foucault, mas sim somá-los. 
            Em um momento anterior a esse manifesto eu diagnostiquei que o cuidado de si em Foucault era epistêmico. Epistêmico porque no momento cartesiano, descrito por Foucault, surgiu uma eliminação do cuidado de si no ato de conhecer que era a condição epistemológica essencial para se conhecer entre os gregos antigos. Foucault chamou de momento cartesiano quando se eliminou o cuidado de si que, epistemologicamente significa inserir o humano no ato de conhecer. O cuidado de si é a defesa da humanidade e de sua liberdade. E assim o conhecimento eliminando o cuidado do si do ato de conhecer tira o humano do ato de conhecer e o subjuga e destrói.
            Como pensavam os gregos antigos, como disse Sócrates no Primeiro Alcibíades de Platão, segundo foi dito por Foucault, era de capital importância a prática do cuidado de si que foi o que subordinava o conhece-te a ti mesmo. Entretanto, Foucault mostrou em suas pesquisas históricas que a eliminação do cuidado de si se iniciou com a teologia cristã. Ele usou o nome momento cartesiano no qual se eliminou o cuidado de si do ato de conhecer por Descartes para marcar o momento no qual se fundamentou o que já estava  na teologia cristã que era a eliminação do cuidado de si. Em Descartes cada um, sem o cuidado de si, bastaria usar o seu método que se iniciou com o penso logo existo para acessar a verdade. Um racionalismo no qual o que é humano deixou de ser o objetivo porque eliminado o cuidado de si, que é o que se  tem de vida e de humano no ato de conhecer, portanto sua ética com a qual respeita a si,  aos outros e a natureza e o planeta em que vivemos. Ele é substituído por uma verdade que se origina na matemática que destrói o homem, a natureza e o planeta em que habitamos. No método cartesiano, ao eliminar o cuidado de si, privilegiando só o racionalismo sem o homem e a vida, também gerou o iluminismo com essa mutação epistêmica. Fez o homem ser escravo, nessa epistemologia, de como acessar o conhecimento e as coisas por ele pesquisadas. E como resultado fez surgir uma espécie de ciência, descrita com muita acuidade, por Mary Shelley em Frankenstein, exercida por Mengele e na criação da bomba atômica entre outros resultados semelhantes. Isso ocorreu porque sendo a-ético, sem levar em consideração o humano, a vida e a natureza, porque se eliminou o cuidado de si no ato de conhecer. E nesse, processo epistêmico, se elimina a liberdade do homem o fazendo então escravo de suas descobertas e do conhecimento. Uma cisão da razão que, eliminando o humano e o cuidado com a vida do homem e da natureza, criou uma razão cindida entre o humano e a razão. Como também, foi bem ilustrado por Goethe no seu poema O Aprendiz de Feiticeiro. O problema epistemológico colocado por Foucault foi esse. Por isso que a sua solução política e revolucionária foi reeditar, como era praticado anterior ao pensamento da teologia cristã e depois de Descartes, o cuidado de si.
            De certa maneira podemos também ler o Apolíneo e o Dionisíaco de Nietzsche sob esse ponto de vista.  Horkheimer e Adorno fizeram a mesma análise dessa cisão da razão com a eliminação do cuidado de si, só que usando uma terminologia diferente como a teoria tradicional na qual eles se referem a Descartes em oposição com a teoria crítica que era baseada na filosofia marxista. Foucault os elogiou, mas não aceitou sua solução influenciada pelo marxismo.
            Ampliei esse fato para aqui colocar que o cuidado de si é também político porque Foucault colocou sua reedição como a solução para o sujeito sujeitado se libertar das relações de poder. E revolucionário porque é assim que se enfrenta o poder para se mudar a realidade social e política naquilo que nos indigna. Portanto o cuidado de si, em Foucault, é epistêmico, político e revolucionário.

           
            2 – Roteiro para iniciar o conhecimento do pensamento de Foucault.

            Este é uma espécie de roteiro, que costumo repetir, para facilitar inicialmente conhecer o pensamento de Foucault.
            Foucault analisa o poder através do sujeito. Principalmente na constituição da subjetividade do sujeito. Ele decompõe o sujeito para identificar nele as ações do poder. Tudo se dá a partir daí. E faz outro deslocamento para analisar o poder.  Recusou o poder como sempre foi descrito como existente em si e focou nas relações de poder que, através de estratégias, constitui o sujeito. E a saída dessa condição de sujeito é a reedição do cuidado de si que vai desenvolver no sujeito a capacidade de ser o mestre de si mesmo e assim recusar toda sujeição através de sua subjetividade. O enfrentamento do poder é eliminar a objetivação, subjetivação, individualização e totalização para o sujeito deixar de ser sujeito. É essa a coluna vertebral do pensamento de Foucault que sustenta todas as suas reflexões que giram em torno dessa descoberta.

            Primeiro: o objeto de pesquisa de Foucault foram as relações entre verdade e poder na constituição do sujeito. Em Foucault a palavra sujeito é o sujeito sujeitado. Portanto, ele fez uma analítica da dominação do sujeito pela associação da verdade com o poder. Em uma equação podemos dizer: Verdade + Poder = o sujeito sujeitado.
            Um dos textos básicos de Foucault é  O Sujeito e o Poder, escrito em 1982. Nesse texto ele resume grande parte de suas pesquisas e de seu pensamento. Em O Sujeito e o Poder,  publicado em Ditos e Escritos IX , na edição brasileira pela editora Martins Fontes, em 2014, na página 119, Foucault escreveu:

        Não é, pois o poder, mas o sujeito que constitui o tema geral de minhas pesquisas.
         É verdade que fui levado a interessar-me de perto pela questão do poder. Evidenciou-se-me logo que, se o sujeito humano está preso em relações de produção e em relações de sentido, ele está também preso em relações de poder de uma grande complexidade. Ora, acontece que dispomos, graças à história e à teoria econômicas, de instrumentos adequados para estudar as relações de produção; assim também, a linguística e a semiótica fornecem instrumentos ao estudo das relações de sentido. Mas, quanto às relações de poder, não havia nenhum instrumento definitivo; recorríamos a maneiras de pensar o poder se apoiavam seja em modelos jurídicos (o que legitima o poder?), seja em modelos institucionais (o que é o Estado?). Era, então, necessário ampliar as dimensões de uma definição do poder, se quiséssemos utilizar essa definição para estudar a objetivação do sujeito. 


             Em Ditos e Escritos V,  na edição brasileira publicada pela editora Martins Fontes, em 2006, na página 274, em uma entrevista A ética do cuidado de si como prática da liberdade, em 20 de janeiro de 1984, para Concórdia, Revista internacional de filosofia nº 6,  julho e dezembro de 1984, o entrevistador perguntou:

   (...) Em seus cursos no Collège de France, o senhor havia falado das relações entre poder e saber; agora o senhor fala das relações entre sujeito e verdade. Há uma complementaridade entre os dois pares de noções, poder/saber e sujeito/verdade?
 - Meu problema sempre foi, como dizia no início, o das relações entre sujeito e verdade: como o sujeito entra em um certo jogo de verdade.

           No meu entender nessa entrevista ele encerrou o assunto descrevendo o seu objeto de pesquisa durante toda sua vida.
           
            Segundo: o seu método. O ponto de vista para Foucault analisar esse seu objeto de pesquisa, verdade e poder na criação do sujeito nas relações de poder, foi o empirismo. Por isso recusou pensar os acontecimentos históricos a partir de universais, teleologias e filosofias trans-históricas e se deteve apenas nos fatos singulares, isto é, acontecimentos e práticas. Assim ele recusou o racionalismo, a metafísica, a fenomenologia, o existencialismo, o marxismo, ou seja, Hegel, Marx, Sartre entre outros. E ele mesmo disse ser um positivista feliz e Paul Veyne o chamou de empirista histórico, o que ele não contestou. 

         Terceiro: o resultado. Foucault lendo os documentos históricos descobriu que existiam pressupostos recorrentes nesses documentos em cada época. Então ele deslocou de focar o olhar em analisar o conteúdo das ideias nesses documentos, que é o mais comum se fazer, para como essas idéias foram geradas a partir desses pressupostos no ato de conhecer em cada época. E é esse a priori que determina o que vai se falar, escrever e pensar em cada época. Chamou esses pressupostos, que geravam o conhecimento, de episteme e as idéias que eles geravam de discursos. Portanto, esses pressupostos que geravam discursos foram chamados de a priori histórico. Essa foi a revolução que Foucault fez na epistemologia e no conhecimento. Em vez de fazer uma história das ideias, ele fez uma história desses pressupostos muitas vezes não percebidos por serem considerados óbvios. E ele os isolou em cada época e desfez suas obviedades porque os isolou e descreveu.  Foucault fez então, em vez de uma história das ideias, uma história das epistemes no seu livro As Palavras e as Coisas.

            Quarto: a consequência.  Foucault, e isso é o mais importante, analisou o discurso como práticas. O descreveu como práticas discursivas e mostrou como essas práticas se tornam uma estratégia em outro tipo de práticas no que ele chamou de relações de poder. Quer dizer, analisou as práticas discursivas e suas relações com as práticas de poder disseminadas em toda a sociedade que ele chamou de relações de poder.  Em outra equação podemos colocar: práticas discursivas + práticas de poder = relações de poder.         
           
            3 O cuidado de si em Foucault e o anarquismo.
            O que queremos somando o pensamento de Foucault com o anarquismo é colocar no anarquismo o conceito de relações de poder. Quer dizer, como Foucault deslocou o poder de Estado e governo para o exercício do poder disseminado em toda sociedade em relações de poder. Isso é muito importante porque explica que o poder, como se tinha descrito até então, não existe. O que existe é uma rede, na qual, todos participam do poder. Isso é de grande importância porque mostra então como se pode se mudar o mundo sem tomar o poder. Ou melhor, para se ser eficiente em enfrentar essa rede na qual o poder atua é preciso se iniciar com o cuidado de si. E daí a transformação de sua subjetividade sendo o mestre de si mesmo. A revolução é recusar o que você foi até então. Ou seja, deixar de ser fascista.

            Foucault tem três conclusões no decorrer de suas pesquisas: a morte do homem, o poder não existe e a alma prisão do corpo. O primeiro é a substituição do homem com sua consciência ser o centro do conhecimento. Surgiu o estruturalismo, o inconsciente de Freud que substituiu o cartesianismo e a fenomenologia. O poder não existe porque ele atua em rede e a alma prisão do corpo é o cuidado de si ter sido eliminado do conhecimento no momento cartesiano. Portanto, não é tomar o poder, porque o poder não existe, segundo essa descoberta de Foucault. Mas mudar o que existe, que são as microfísicas do poder. Ou seja, a rede, as malhas na qual o poder atua, que é a base na qual se sustenta o poder centralizado do Estado e governo. Na página 26 do livro do curso Em Defesa da Sociedade, ministrado no dia 14 de janeiro de 1976, no Collège de France, por Foucault, publicado no Brasil, em 2010, pela Martins Fontes, na página 26 ele disse:

Terceira precaução do método: não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo – dominação de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras -; mas ter bem em mente que o poder, exceto ao considerá-lo de muito alto e de muito longe, não é algo que se partilhe entre aqueles que o têm e o detêm exclusivamente e aqueles que não o têm e são submetidos a ele. O poder, acho eu, deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor, como uma coisa que só funciona em cadeia. Jamais ele está localizado aqui e ali. Jamais está entre as mãos de alguns, jamais é apossado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona. O poder se exerce em rede, e nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte e consentidor do poder, são sempre seus intermediários. Em outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles.

            Nas páginas 26 e 27 ele diagnosticou: “Todos nós temos fascismo na cabeça”; e, mais fundamental ainda: “todos nós temos o poder no corpo”.  E o poder – pelo menos em certa medida – transita ou transuma por nosso corpo.” (O grifo é meu).

            Se você impedir que o poder transite por seu corpo você inicia a modificação do poder. Corta as milhares de pequenas veias que o alimentam e ele morrerá. É nesse ponto de vista que o poder não existe como a dominação de pessoas sujeitadas e oprimidas, mas ele só o exerce com o consentimento e ações fascistas de todos. Sem isso ele não pode ser exercido, e pelo contrário, ele deixa de existir porque não existe como se pensou que ele existia. Sem a maioria de seus súditos serem fascistas não é possível o fascismo. Aliás, os anarquistas também já agem de certa maneira assim. Como não acreditam em partidos nem em governos eles procuram alternativas de vida e de militância para salvaguardar o seu princípio: sem Deus e sem amos. O que Foucault fez foi, sob outro caminho, que começa com a análise da constituição da verdade e do saber, mostrar como se o indivíduo se modificar com o cuidado de si torna-se um revolucionário eficiente no enfrentamento do poder, mais concretamente, na eliminação das relações de poder. E estamos vendo acontecer no aqui e agora. Não mais supostos revolucionários tomarem o poder e exercerem o seu fascismo prometendo fazer mudanças que nunca farão. 
            Este manifesto visa mostrar em uma filosofia e prática política anarcofoucaultiana o que já ocorre em todas as sociedades contemporâneas libertando milhões de pessoas da sujeição. Com as lutas específicas contra o racismo, o  desenvolvimento do feminismo, as liberdades de expressão corporais e sexuais e a eliminação da censura de textos, fotos, arte etc. E também a melhoria de vida pela luta dos destituídos em suas ações sem partidos nem governos. Essa teoria e consciência política anarquista disseminada e muitas vezes sem dizer o nome, é que tem libertado e conseguido mudar o mundo na atualidade para milhões de pessoas. Basta você olhar em volta que você vai ver como os movimentos sociais, as redes sociais e a própria internet estão mudando o mundo. Como sempre os anarquistas propuseram. E o resto vai a reboque. Todos estão cansados de serem enganados e vítimas de um fascismo que também não assume o nome. Nós já fizemos, até então muito mais a nível mundial, do que todas as ditas revoluções frustradas pelo exercício sanguinolento do exercício do poder e os privilégios dos que tomaram o poder em nome dos oprimidos.
            Como o poder não existe, nessas tomadas do poder por supostos líderes se dizendo revolucionários os fazem acumular privilégios e dominar todos. Gradativamente a desilusão de todos que deixam de acreditar nos novos donos do poder, inicialmente  um dissidente, depois pequenos grupos, mas quando o desconforto e a decepção atingem quase todos, até os que estão governando ou vão governar, o poder supostamente revolucionário cai. Não foi isso que vimos com o fascismo, o nazismo, o stalinismo e muitas outras pequenas e ridículas ditaduras mundo afora? 
            Primeiro, o espanto diante das propostas anarquistas, depois começa o namoro com elas e, muitas vezes sem dizer o nome, aderem, concordam, com o que estamos sugerindo. Por isso, hoje as mulheres são iguais aos homens em países que já estabeleceram isto, os considerados loucos são melhor tratados, não se admite racismo, não se proíbem livros, filmes, peças de teatro, nudismo e sexo explícito entre outras libertações na eliminação de relações de poder nessas dominações do homem pelo homem por elites fascistas. Microrrevoluções efetuadas pelo povo, em geral mudando com discursos anarquistas e com os anarquistas, sem dizer o nome,  de forma anarquista, sem amos e sem partidos, a realidade no aqui e agora. O poder cede e de tanto ceder morrerá. E essas mudanças não molestaram ninguém, apenas nos provaram que a liberdade não destrói, ao contrário, faz viver melhor a todos. E em algumas dessas sociedades o nível econômico de todos tem melhorado muito. Ou seja, no único medidor possível, que é diminuir a diferença entre o que ganha mais e o que ganha menos. O que destrói, enlouquece, cria monstros é o autoritarismo quando disseminado em uma sociedade.
             Vamos detalhar agora que a reedição do cuidado de si como enfrentamento do poder em Foucault, foi uma solução muito próxima do anarquismo individualista.          Temos aí as semelhanças entre Foucault e os anarquistas individualistas como Han Hyner e Emile Armand. No meu entender, os anarquistas têm uma vocação muito grande para criar termos que geram mal entendidos. O anarcoindividualismo é um deles. Alguns pensam que é um elogio ao egoísmo. Não é. É uma garantia de liberdade. É não se submeter, até por alguns que, se dizendo anarquistas ou assim pensando, podem consciente ou inconscientemente estabelecer relações de poder com outros anarquistas. Cabe não termos medo de palavras que muitas vezes não correspondem às coisas. Han Hyner no seu Manual Filosófico do Individualista, publicado no Brasil pela Editora Germinal, em 1966, é particularmente importante porque ele associa o anarquismo aos estóicos. O que Foucault também o fez em A Hermenêutica do Sujeito. Foucault tem o mesmo ponto de vista em relação à importância dada aos estóicos, epicuristas e, depois, com os cínicos, no seu último curso no Collège de France, A Coragem da Verdade.
            Não se pode mudar o que nos indigna com eficiência sem mudar a nós mesmos. Claro, porque somos resultado de uma sociedade fascista e capitalista. E enfrentar o fascismo que está em nós é a primeira tarefa. O cuidado de si é o caminho para, sendo o mestre de si mesmo, escapar da objetivação, subjetivação, individualização e totalização, resultados do exercício da dominação do sujeito. E uma maneira de praticar o cuidado de si pode ser com os estóicos, epicuristas e os cínicos.
            O anarquismo é mais um método, uma caixa de ferramentas, como Foucault também definiu seu pensamento, do que uma teoria ossificada e terminada. Esse método pode desenvolver múltiplas teorias, práticas, estilos de vida, maneiras de pensar e agir. Desde a arte até as barricadas. Como método o anarquismo parte de apenas um postulado que é recusar todo tipo de dominação, diagnosticar onde se escondem e se mascaram exercícios de poder e procura criar e experimentar organizações, maneiras de viver sem relações de poder. Ou, como também disse Foucault no seu prefácio do livro de Deleuze e Guattari Anti-Édipo, criar relações não fascistas.
            Outra semelhança entre o anarquismo e Foucault é o pensamento de Bakunin e em relação à verdade e as ciências. Em Deus e o Estado Bakunin colocou, e foi um tema recorrente em Foucault, que é através da verdade e, em grande parte, surgindo principalmente com as ciências humanas, que se domina os homens. Isto é, principalmente no século XIX as ciências humanas contribuíram para fazer surgir o sujeito sujeitado nessa estratégia de relacionar saber e verdade com o poder. Você pode ler Deus e o Estado de Bakunin em http://livros01.livrosgratis.com.btr/cv000020.pdf  Acessei em 1º de maio de 2016.  Os grifos são meus. Assim escreveu Bakunin:

            “A liberdade do homem consiste unicamente nisto: ele obedece às leis naturais porque ele próprio as reconheceu como tais, não porque elas lhe foram impostas exteriormente, por uma vontade estranha, divina ou humana, coletiva ou individual, qualquer. Suponde uma academia de sábios, composta pelos representantes mais ilustres da ciência; imaginai que esta academia seja encarregada da legislação, da organização da sociedade, e que, inspirando-se apenas no amor da mais pura verdade, ela só dite leis absolutamente conforme às mais recentes descobertas da ciência. Pois bem, afirmo que esta legislação e esta organização serão uma monstruosidade, por duas razões: a primeira, é que a ciência humana é sempre necessariamente imperfeita, e que, comparando o que ela descobriu com o que ainda lhe resta a descobrir, pode-se dizer que está ainda em seu berço. De modo que, se quiséssemos forçar a vida prática dos homens, tanto coletivo quanto individual, a se conformar estritamente, exclusivamente, com os últimos dados da ciência, condenar-se-ia tanto a sociedade quanto os indivíduos a sofrer martírio sobre um leito de Procusto, que acabaria em breve por desarticulá-los e sufocá-los, ficando a vida sempre infinitamente maior do que a ciência. A segunda razão é a seguinte: uma sociedade que obedecesse à legislação emanada de uma academia científica, não porque ela tivesse compreendido seu caráter racional - em cujo caso a existência da academia se tornaria inútil - mas porque esta legislação, emanando da academia, se imporia em nome de uma ciência que ela veneraria sem compreendê-la, tal sociedade não seria uma sociedade de homens, mais de brutos. Seria uma segunda edição dessas missões do Paraguai, que se deixaram governar durante tanto tempo pela Companhia de Jesus. Ela não deixaria de descer, em breve, ao mais baixo grau de idiotia. Mas há ainda uma terceira razão que tornaria tal governo impossível. É que uma academia científica, revestida desta soberania por assim dizer absoluta, ainda que fosse composta pelos homens mais ilustres; acabaria infalivelmente, e em pouco tempo, por se corromper moral e intelectualmente. E atualmente, com o pouco de privilégios que lhes deixam, a história de todas as academias. O maior gênio científico, no momento em que se torna acadêmico, um sábio oficial, reconhecido, decai inevitavelmente e adormece. Perde sua espontaneidade, sua ousadia revolucionária, e a energia incômoda e selvagem que caracteriza a natureza dos maiores gênios, sempre chamada a destruir os mundos envelhecidos e a lançar os fundamentos dos novos mundos. Ganha sem dúvida em polidez, em sabedoria utilitária e prática, o que perde em força de pensamento. Numa palavra, ele se corrompe. É próprio do privilégio e de toda posição privilegiada matar o espírito e o coração dos homens. O homem privilegiado, seja política, seja economicamente, é um homem depravado de espírito e de coração. Eis uma lei social que não admite nenhuma exceção e que se aplica tanto a nações inteiras quanto às classes, companhias e indivíduos. E a lei da igualdade, condição suprema da liberdade e da humanidade. O objetivo principal deste estudo é precisamente demonstrar esta verdade em todas as manifestações da vida humana. Um corpo científico, ao qual se tivesse confiado o governo da sociedade, acabaria logo por deixar de lado a ciência, ocupando-se de outro assunto; e este assunto, o de todos os poderes estabelecidos, seria sua eternização, tornando a sociedade confiada a seus cuidados cada vez mais estúpida e, por conseqüência, mais necessitada de seu governo e de sua direção. Mas o que é verdade para as academias científicas, o é igualmente para todas as assembléias constituintes e legislativas, mesmo quando emanadas do sufrágio universal. Este último pode renovar sua composição, é verdade, o que não impede que se forme, em alguns anos, um corpo de políticos, privilegiados de fato, não de direito, que, dedicando-se exclusivamente à direção dos assuntos públicos de um país, acabem por formar um tipo de aristocracia ou de oligarquia política. Vejam os Estados Unidos e a Suíça. Assim,. nada de legislação exterior e nada de autoridade, uma, por sinal, sendo inseparável da outra, e todas as duas tendendo à escravização da sociedade e ao embrutecimento dos próprios legisladores. Decorre daí que rejeito toda autoridade? Longe de mim este pensamento. Quando se trata de botas, apelo para a autoridade dos sapateiros; se se trata de uma casa, de um canal ou de uma ferrovia, consulto a do arquiteto ou a do engenheiro. Por tal ciência especial, dirijo-me a este ou àquele cientista. Mas não deixo que me imponham nem o sapateiro, nem o arquiteto, nem o cientista. Eu os aceito livremente e com todo o respeito que me merecem sua inteligência, seu caráter, seu saber, reservando todavia meu direito incontestável de crítica e de controle. Não me contento em consultar uma única autoridade especialista, consulto várias; comparo suas opiniões, e escolho aquela que me parece a mais justa. Mas não reconheço nenhuma autoridade infalível, mesmo nas questões especiais; consequentemente, qualquer que seja o respeito que eu possa ter pela humanidade e pela sinceridade desse ou daquele indivíduo, não tenho fé absoluta em ninguém. Tal fé seria fatal à minha razão, à minha liberdade e ao próprio sucesso de minhas ações; ela me transformaria imediatamente num escravo estúpido, num instrumento da vontade e dos interesses de outrem. Se me inclino diante da autoridade dos especialistas, e se me declaro pronto a segui-la, numa certa medida e durante todo o tempo que isso me pareça necessário, suas indicações e mesmo sua direção, é porque esta autoridade não me é imposta por ninguém, nem pelos homens, nem por Deus. De outra forma as rejeitaria com horror, e mandaria ao diabo seus conselhos, sua direção e seus serviços, certo de que eles me fariam pagar, pela perda de minha liberdade e de minha dignidade, as migalhas de verdade, envoltas em muitas mentiras que poderiam me dar. Inclino-me diante da autoridade dos homens especiais porque ela me é imposta por minha própria razão. Tenho consciência de só poder abraçar, em todos os seus detalhes e seus desenvolvimentos positivos, uma parte muito pequena da ciência humana. A maior inteligência não bastaria para abraçar tudo. Daí resulta, tanto para a ciência quanto para a indústria, a necessidade da divisão e da associação do trabalho. Recebo e dou, tal é a vida humana. Cada um é dirigente e cada um é dirigido por sua vez. Assim, não há nenhuma autoridade fixa e constante, mas uma troca contínua de autoridade e de subordinação mútuas, passageiras e sobretudo voluntárias. Esta mesma razão me proíbe, pois, de reconhecer uma autoridade fixa, constante e universal, porque não há homem universal, homem que seja capaz de aplicar sua inteligência, nesta riqueza de detalhes sem a qual a aplicação da ciência a vida não é absolutamente possível, a todas as ciências, a todos os ramos da atividade social. E, se uma tal universalidade pudesse ser realizada em um único homem, e se ele quisesse se aproveitar disso para nos impor sua autoridade, seria preciso expulsar esse homem da sociedade, visto que sua autoridade reduziria inevitavelmente todos os outros à escravidão e à imbecilidade. Não penso que a sociedade deva maltratar os gênios como ela o fez até o presente momento; mas também não acho que os deva adular demais, nem lhes conceder quaisquer privilégios ou direitos exclusivos; e isto por três razões; inicialmente porque aconteceria com freqüência de ela tomar um charlatão por um gênio; em seguida porque, graças a este sistema de privilégios, ela poderia transformar um verdadeiro gênio num charlatão, desmoralizá-lo, animalizá-lo; e, enfim, porque ela daria a si um senhor. Resumindo. Reconhecemos, pois, a autoridade absoluta da ciência porque ela tem como objeto único a reprodução mental, refletida e tão sistemática quanto possível, das leis naturais inerentes à vida material, intelectual e moral, tanto do mundo físico quanto do mundo social, sendo estes dois mundos, na realidade, um único e mesmo mundo natural. Fora desta autoridade exclusivamente legítima, pois que ela é racional e conforme à liberdade humana, declaramos todas as outras autoridades mentirosas, arbitrárias e funestas. Reconhecemos a autoridade absoluta da ciência, mas rejeitamos a infalibilidade e a universalidade do cientista. Em nossa igreja - que me seja permitido servir-me por um momento desta expressão que por sinal detesto: a igreja e o Estado são minhas duas ovelhas negras; em nossa Igreja, como na Igreja protestante, temos um chefe, um Cristo invisível, a ciência; e como os protestantes, até mais conseqüentes do que os protestantes, não queremos tolerar nem o papa, nem o concilio, nem conclaves de cardeais infalíveis, nem bispos, nem mesmo padres. Nosso Cristo se distingue do Cristo protestante no fato de este último ser um Cristo pessoal, enquanto o nosso é impessoal; o Cristo cristão, já realizado num passado eterno, apresenta-se como um ser perfeito, enquanto a realização e a perfeição de nosso Cristo, a ciência, estão sempre no futuro: o que equivale a dizer que elas jamais se realizarão. Ao não reconhecer outra autoridade absoluta que não seja a da ciência absoluta, não comprometemos de forma alguma nossa liberdade. Entendo por ciência absoluta a ciência realmente universal, que reproduziria idealmente, em toda a sua extensão e em todos os seus detalhes infinitos, o universo, o sistema ou a coordenação de todas as leis naturais, manifestas pelo desenvolvimento incessante dos mundos. É evidente que esta ciência, objeto sublime de todos os esforços do espírito humano, jamais se realizará em sua plenitude absoluta. Nosso Cristo permanecerá pois eternamente inacabado, o que deve enfraquecer muito o orgulho de seus representantes titulados entre nós. Contra este Deus, filho, em nome do qual eles pretendiam nos impor sua autoridade insolente e pedantesca, recorremos a Deus pai, que é o mundo real, a vida real, do qual ele é apenas a expressão muito imperfeita, e do qual somos os representantes imediatos, nós, seres reais, vivendo, trabalhando, combatendo, amando, aspirando, gozando e sofrendo. Numa palavra, rejeitamos toda legislação, toda autoridade e toda influência privilegiada, titulada, oficial e legal, mesmo emanada do sufrágio universal, convencido de que ela só poderia existir em proveito de uma minoria dominante e exploradora, contra os interesses da imensa maioria subjugada.  Eis o sentido no qual somos realmente anarquistas.” Os grifos são meus.

             Este texto de Bakunin é uma definição do que é o anarquismo e o que é ser anarquista.
            Um dos problemas centrais analisado pelos anarquistas, e talvez até o fez surgir, foi  o grande descontentamento com o resultado das revoluções que pregavam liberdade, igualdade e fraternidade e depois o socialismo e exerceram novas formas de dominação e exploração. Ou seja, como os que tomaram o poder prometendo igualdade e liberdade se transformaram, em todos os países e em épocas diferentes, em uma nova classe opressora, em um governo fascista. Por isso que os anarquistas pensaram que a causa que transformava libertação em uma nova opressão era manter o Estado e o governo. Daí o postulado de uma sociedade sem Estado. Sim, estavam com a razão. Mas aqui vamos colocar com que estratégia se pode efetuar essa mudança.
            Já Foucault não iniciou por aí suas reflexões. Mas chegou às mesmas conclusões. Ele iniciou suas pesquisas deslocando da centralização do poder no Estado para a verdade como uma estratégia de exercício de poder. E o cuidado de si, como solução para escapar a essa dominação pelo saber-poder. O que também vemos no texto acima de Bakunin. Bakunin já desconfiava de toda autoridade e também da autoridade da ciência, sem o crivo da liberdade individual, ou seja, na terminologia de Foucault, o retorno aos gregos que praticavam o cuidado de si para serem livres através de serem os mestres de si mesmos e portanto capazes, como os cínicos, de expressar a sua verdade mesmo muitas vezes cientes de possível punição com a morte. A questão política em Foucault se inicia com uma epistemologia de como se acessa o conhecimento. Na eliminação do cuidado de si no momento cartesiano esse procedimento epistêmico levou a desencadear uma questão política. Mas já encontramos em Bakunin também que nem a ciência poderia submeter o homem aos seus discursos. 
            E por isso foi que os anarquistas postularam que só seria possível garantir a liberdade e igualdade entre os homens se eliminassem o Estado e o governo. Mas aí se coloca uma questão: substituir por qual forma de administração dos homens e das coisas o Estado e o governo?  E aí uma série de experiências e propostas foram colocadas pelos anarquistas como autogestão, ação direta, entre outras. No meu entender essas experiências e tentativas nas histórias do anarquismo são importantes, mas só elas não puderam satisfazer a todos porque estamos séculos vivendo sob a dominação de governos. Cabe mudar o olhar nessa questão. E Foucault nos permite isso. Não mais só se fixar no poder como Estado e governo, como o centro da dominação, mas nas relações de poder como Foucault fez ao deslocar o olhar na sua filosofia política para as relações de poder. Ou seja, não se fixar apenas nos mandatários, mas focar as relações de poder a partir dos súditos e encontrar a saída da dominação a partir daí as mudando para relações sem poder.
            Para Foucault o poder não existe. Ou seja, não é só a partir do poder central que surge a sujeição. O poder do Estado e do governo administra e faz retornar em rede um diálogo constante entre o poder central e os seus súditos nas malhas do poder. Portanto o governo se exerce com as relações de poder disseminadas em toda a sociedade. É um reflexo de microrrelações diárias de poder entre todos contra todos. E a solução é mudar, inicialmente em nós mesmos, através do cuidado de si, as relações de poder para relações sem poder, ou seja, relações não fascistas. Se Foucault não foi um anarquista e muito menos um anarcossindicalista pode-se interpretar seu pensamento como semelhante a um anarco-individualismo. Aliás, o que os anarquistas o fazem e experimentam há séculos em todas as suas atividades desde as relações trabalhistas, amorosas, pedagógicas e familiares que é criar outras instituições e comportamentos, no aqui e agora, como escolas, produção de bens sem serem organizações autoritárias e fascistas.
            Mas, na realidade, todo anarquista é individualista porque não admite nada e ninguém que o domine nem mesmo organizações anarquistas ou que assim se autodenominem. E aqui sugerimos que, a partir daí, que se associem a outros anarquistas individualistas ou não para juntando forças garantir sua autonomia. Aliás, eu acho que todo anarquista é anarcoindividualista, mas isso é uma outra história.  Sei que admitir o termo individualista nos ofende assim como o cuidado de si se mal lidos porque se pensa que se excluiu o outro e não é isto. Cuidar de si significa também cuidar dos outros para unir forças.  Ora, o que postulamos aqui é uma estratégia revolucionária que, se mudarmos as relações de poder para relações sem poder, ou seja, relações não fascistas, mudaremos o mundo. E assim enfrentarmos o poder a partir de mudar a si mesmo e ao mundo.  Ou seja, o Estado e governo passam a ser, como o poder não existe, administradores de relações sem poder. Ou seja, se transformar o Estado e o governo em uma forma de organização libertária de apenas administrar relações sem poder nas malhas de relações sem poder. O que aqui se propõe é uma mutação de organização em sociedades mais complexas como as nossas de administração das relações sem poder. Se você ler atentamente Pierre Clastres, em toda sua obra ele mostra que antes de surgir o Estado, existia uma sociedade organizada com um cacique. Mas um cacique que não governava, apenas cumpria a função de governar o seu desgoverno. Ou seja, organizar uma sociedade para manter paz e tranquilidade de todos. Organização de uma administração cujo único objetivo é garantir  que as relações entre todos sejam relações sem poder. É o Estado e o governo, se quiserem ainda manter esses nomes para tranquilizar a todos que viveram durante séculos sob sua opressão e se sentem órfãos sem eles, ser unicamente administrador de relações sem poder. Portanto, com outro nome pode ser chamada uma democracia libertária plena, que é uma organização de uma sociedade libertária. Se for necessária uma constituição que garanta que seja um conjunto de leis que visam exclusivamente manter e garantir relações sem poder. E com o tempo e a prática libertária ignorá-la porque deixa de ser necessária. A questão e a teoria e a prática revolucionária se concentram na crítica às relações de poder e a substituir por relações sem poder em todas as instâncias da sociedade. E essa é também a prática revolucionária que começa com o cuidado de si transformando o sujeito sujeitado e assim o deixa apto a criar relações sem poder. Essa é a prática fundamental dos anarcofoucaultianos. As relações sem poder para todos e em toda a sociedade.
            Um exemplo atual dessa prática são as leis que impedem, no aqui e agora, os racistas de agredir e oprimir os negros, índios, ciganos e outros excluídos; bater e estuprar as mulheres; encarcerar, matar e negar direitos a quem pratica a liberdade sexual. Não é destruir o Estado e o governo, mas mudar as relações de poder para relações sem poder e assim transformar os Estados e governos em administradores de relações sem poder. Uma sociedade sem relações de poder e, portanto anarquista, mas organizada e eficiente na manutenção da paz e respeito entre seus cidadãos em uma democracia libertária plena. E sugiro que os anarquistas e anarcofoucaultianos a construam. Na realidade, uma sociedade sem Estado, porque ele se transformou em um administrador das relações sem poder, ou seja, relações não fascistas.
            É, portanto, na modificação da microfísica do poder que está a solução. Não é tomar o poder que não existe e não se pode tomar o que não existe. Por isso é que quando revolucionários de todos os tipos tomaram o poder, nada conseguiram mudar porque as relações de poder estavam em toda a sociedade e se refletiam neles. O poder não existe, ele é apenas um reflexo, um eixo de relações de poder. E na ilusão que se tomou o poder, mudando apenas a guarda, descobre que não mudou o que sustentava o poder e então ela o obriga a exercer o poder que volta a ser exercido como o antigo regime ou talvez até com mais violência e fascismo. Isso ocorre porque o poder é o resultado das malhas do poder e só mudando essas malhas de relações de poder para relações sem poder é que se elimina o poder que vai refletir e administrar relações sem poder. Como estamos vendo a análise tanto anarquista como de Foucault foi a questão do poder. O poder para eles não é um epifenômeno da economia, nem de outras causas jurídicas ou consensuais. O diagnóstico são as relações de poder. E isso une os dois pensamentos, tanto dos anarquistas como de Foucault.  
            Os anarquistas já praticam, ou assim se esforçam nos seus grupos e ações revolucionárias, as relações sem poder. É isso que sempre definiu os agrupamentos e organizações anarquistas. E aqui com o anarcofoucaultismo estamos mostrando a transformação de baixo para cima e não de cima para baixo. Portanto, e devido a isso, o pensamento de Foucault é de suma importância para os anarquistas e todos aqueles que querem mudar o mundo sem exercer nem tomar o poder.  Aliás, o que se conseguiu já, no aqui e agora, que é outro postulado do anarcofoucaultismo, como nas leis brasileiras Maria da Penha (contra misoginia) e Caó (contra o racismo). Assim sendo, com movimentos específicos associados com o mesmo objetivo de mudar o mundo no aqui e agora com ações especificas e pensadores específicos. Foucault também chamou atenção para o que é um intelectual específico. E muitos desses movimentos conseguiram, no mundo, no aqui e agora, repito, permitir mais liberdades e expressões individuais livres. E estamos citando apenas algumas vitórias, mas que levaram milhões de pessoas a viverem melhor.
            Com outros nomes ou talvez, com anarquistas que não ousam dizer o nome, muitos grupos e ativistas específicos, sem Deus, amos, partidos e políticos, que vão a reboque, mudar o mundo no aqui e agora, sem nenhuma profecia nem hegeliana, marxista, utópica ou religiosa. Afinal, não somos profetas e só temos uma vida para ficar imaginando um paraíso no futuro. Portanto, podemos dormir tranquilos que em uma democracia libertária plena existe uma efetiva ordem de organizar um país, por mais populoso e de grande território, e assim é possível porque a malha será com relações sem poder. Quer dizer que autoritários e fascistas explorem, dominem e assim agridam a população exercendo relações de poder quer nas escolas, nas famílias, nos hospitais, nos hospícios enfim em toda a rede e malhas de relações que circulam na sociedade. Não é uma utopia porque com o nome de democracia plena, só falta aí o libertária. É uma experiência, que embora ainda acanhada diante do que os anarcofoucaultianos sugerem, a Holanda, Dinamarca, Suécia, Noruega, Islândia, Finlândia, Suiça já mostram um processo de administração democrática muito diferente dos outros países do mundo. Esses paises, por adotar leis e garantias de autonomia e liberdade de seus habitantes, criaram uma democracia plena para todos. Estou chamando atenção que esses países têm ainda, sendo capitalistas, uma forma mais plena de democracia na qual o povo consegue criar leis que garantam a liberdade de todos. Mas não confunda a democracia plena desses países com a democracia libertária plena ou sociedade libertária plena se acharem já gasto o termo democracia que é o que estou sugerindo. O que proponho aqui é a transformação do Estado para situá-lo apenas como administração das relações sem poder em todas as suas instâncias. E isso se consegue de baixo para cima e não de cima para baixo. Desde você, que me lê, cuidando de si, criando escolas, famílias, bairros libertários etc., isto é, em que se praticam formas organizadas de relações sem poder.
            Foucault escreveu, em vários momentos de suas reflexões, alguns manifestos políticos bastante semelhantes aos manifestos anarquistas. O foco no seu conceito de relações de poder, deslocando do Estado e do governo para analisar o poder, portanto, substituindo o conceito de poder e Estado como o principal, já foi um passo epistemológico anarquista.
            Em 1982, Foucault escreveu O Sujeito e o Poder. Esse texto é um resumo de grande parte do seu pensamento. Sugiro que ele deve ser um dos textos básicos para os anarcofoucaultianos. Esse é também, para nós, o manifesto que nos deixou Foucault. Sugiro também que se o leia na versão publicada aqui no Brasil pela editora Forense Universitária, do Rio de Janeiro, no Ditos e Escritos IX, publicado em 2014. É nesse texto, na página 128, dessa edição que ele escreveu:

      Sem dúvida, o objetivo principal, hoje, não é descobrir, mas recusar o que nós somos. Devemos imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos dessa espécie de “dupla obrigação” política que são a individualização e a totalização simultâneas das estruturas do poder moderno.
    Poder-se-ia dizer, para concluir, que o problema, ao mesmo tempo, político, ético, social e filosófico que se apresenta a nós, hoje, não é de tentar libertar o indivíduo do Estado e de suas instituições, mas nos livrarmos, nós, do Estado e do tipo de individualização que a ele se prende. Precisamos promover novas formas de subjetividade, recusando o tipo de individualização que se nos impôs durante vários séculos.          
    
                       
            No meu entender, o manifesto que Foucault escreveu em O Sujeito e o Poder já basta. Agora é preciso se ter certo cuidado em qual versão vai-se ler em português. Ele escreveu em inglês O Sujeito e o Poder. Ele apareceu primeiro publicado como apêndice no livro de Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow Michel Foucault Uma trajetória filosófica. Entretanto, para se publicar na França, Foucault corrigiu e essa correção é que foi publicada nos Ditos e Escritos também aqui no Brasil. É essa que se deve ler por ser a versão final feita por Foucault.
             Eis um outro texto no qual, no meu entender, Foucault escreveu também um outro manifesto político que foi o prefácio do Anti-Édipo de Deleuze e Guattari. Este manifesto na edição brasileira está no Prefácio (Anti-Édipo) 1977 em  Ditos e Escritos VI, Repensar a Política, publicado em 2011 pela editora Forense Universitária, do Rio de Janeiro.

 (...) O Anti-Édipo é uma introdução à vida não fascista. Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, quer já estejam instaladas ou próximas de sê-lo, acompanha-se de certo número de princípios essenciais, que resumiria, como segue, se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:
      
 - liberem a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante;

- façam crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, antes que por subdivisão e hierarquização piramidal;

- liberem-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, as castrações, a falta, a lacuna), que por tanto tempo o pensamento ocidental sacralizou, como forma de poder e modo de acesso à realidade. Prefiram o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os arranjos móveis aos sistemas. Considerem que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade;

- não imaginem que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo se o que se combate é abominável. É o liame do desejo à realidade (e não sua fuga nas formas da representação) que possui uma força revolucionária;

- não utilizem o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política para desacreditar um pensamento, como se ele só fosse de pura especulação. Utilizem a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política;

- não exijam da política que restabeleça os “direitos” do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação e pelo deslocamento dos diversos arranjos. O grupo não deve ser o liame orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”;

- não caiam apaixonados pelo poder.

           
            A Prática

            1 – A legalidade das práticas. Qualquer prática que for efetuada pelos anarcofoucaultianos só deve ser feita de acordo com as leis vigentes do país em que for efetivada. Nenhuma ação pode ser feita se vai de encontro às leis vigentes porque é ineficaz. O movimento anarcofoucaultiano é, sob todos os pontos de vista, legal e respeita todas as leis vigentes no país em que atua. 
            Porque as modificações propostas para se chegar a uma democracia libertária plena tem como estratégia principal a não-violência. Recentemente movimentos sociais conseguiram que os próprios governos estabelecessem leis contra o racismo, os espancamentos e dominação de mulheres e a exclusão das leis vigentes e perseguições contra adultos que praticam a liberdade sexual que os anarquistas sempre chamaram de amor livre. O Estado aí sofreu uma mutação das leis a partir da ação libertária de grupos sem partidos, sem deuses e sem amos, pela liberdade sexual.
            O casamento tanto entre pessoas de sexos diferentes como com o mesmo sexo deixou de ser uma união fascista, inicialmente com o desquite e depois o divórcio.  O casamento é apenas um contrato, que pode ser desfeito. Mas que garante aos casados uma série de benefícios mantidos pelo Estado, como a pensão no falecimento de um dos cônjuges. E o mais importante, mesmo sem o casamento, se estende aos que se conviveram em uma relação estável, com o nome pejorativo de amasiados. Hoje, até em um país autoritário como o Brasil, a outra família pode ter os benefícios, desde 1988, caso o pai faleça, desde 1988. De uma forma muito curiosa se oficializou a poligamia. Oficializou-se o harém e tudo ficou em paz para quem quer ter um harém e o possa sustentar.

            2 – Honestidade libertária plena. Princípio prioritário e fundamental. Praticar o cuidado de si a partir dos estóicos, epicuristas e cínicos como recomendaram o anarquista Han Hyner e Foucault. O estudo e a prática dos ensinamentos desses filósofos são pré-requisitos para se tornar um anarcofoucaultiano. É através dele que se muda a si mesmo para modificar tudo aquilo que lhe indigna contra a si e aos outros.
            Porque sem essa ética única: não ser escravo dos outros, mas também não ser escravo de si mesmo e, assim sendo, inimigo de si mesmo, nada pode mudar na realidade. E na prática não se associar com pessoas desonestas, mesmo se dizendo anarquistas. Nenhum projeto ou prática revolucionária funciona sem pessoas que possuam autocontrole de seus sentimentos e emoções, que sejam autodisciplinadas e autodidatas.
            É importantíssimo o cuidado de si com a leitura dos estóicos, epicuristas e cínicos, como postularam Hyner e Foucault, para não ser dominado e escravizado por si mesmo, o que levaria ao descontrole de impulsos que o faria ser vítima de uma autoditadura fascista interior consigo e com os outros. O maior gosto superior a qualquer vaidade, orgasmo, dinheiro e qualquer tipo de prazer é quando você, delicada e como muito auto-amor, consegue se autodisciplinar e se controlar porque assim você começa a confiar e ter um imenso orgulho de você mesmo. No aumento da força interior, a partir daí, se ama e confia profundamente em você mesmo. Você conta com você e não o contrário. Só assim você será livre e, no meu entender, forte e um anarquista. Sugiro que experimente o prazer que existe em expulsar o seu ditador interior com o autocontrole e autodisciplina. O maior prazer é eliminar o fascista que está em você, preparado para dá o bote e o colocar em um campo de concentração interior, vítima de si próprio.
            No cuidado de si, sendo uma metodologia para gerar o conhecimento, não ocorre uma dominação do sujeito, muito pelo contrário, é ele que, através do cuidado de si, já impede que o saber o domine. Afinal, você não é um aprendiz de feiticeiro, mas o próprio e eficiente feiticeiro que pode com essa teoria dominar as forças e as adversidades que você desencadeou ou lhe apareceram sem você as esperar. Se você é o mestre de si mesmo, procura seguir os estóicos, epicuristas e cínicos, para não ser escravo de si mesmo, quando acessa a verdade a partir daí, o faz tendo como prioritário a humanidade de si e dos outros.  Isso ocorre porque o cuidado de si é uma reação à escravidão e dominação de qualquer tipo, o que inclui não ser escravo de si mesmo, nem das coisas, nem dos outros, nem das verdades. Por isso é que você é o mestre de si mesmo. A questão política e, portanto, epistemológica, é não é só a verdade, mas como se acessa a verdade. E se eliminou o cuidado de si no ato de conhecer se eliminou qualquer possibilidade de criar uma ciência cuja ética principal é ser voltada para o homem e não o contrário.  A nossa metodologia é a reativação do cuidado de si subordinando o conhece-te a ti mesmo como descobriram, na sabedoria dos gregos antigos com os estóicos, epicuristas e cínicos e Hyner e Foucault.


            3 – A Crítica sistemática da dominação do homem pelo homem. A contestação teórica contra o autoritarismo em todas as suas instâncias.  Combater sempre com uma verdade, portanto uma crítica das verdades a outras verdades por mais que se apresentem como liberais ou outros disfarces. Não pensem que a verdade dita pelos libertários tem a pretensão de ser uma verdade absoluta, apenas é uma verdade contra outra em dado momento histórico. A que vencer ganha.
            Maite Laurrauri na Revista do Ocidente, publicada em Madri, em abril de 1989, assim colocou:

           Foucault cree que al poder se le combate com poder y por tanto a los saberes com los saberes. Su própria labor de análises de las estructuras de poder que hán permitido la formación de determinados saberes es um saber, um conocimiento com el que combatir estas ciências. (...) A estes resultados científicos há que oponerles otros análises que pongam de manifiesto el reforzamiento del actual poder político que aquéllos suponen. (...) Se trata más biem de afirmar una verdade contra otra, de luchar que una verdad triunfe sobre otra.

            Embora ache que uma tradução é uma especialização de um profissional em tradução coloquei abaixo esse esboço dessa tradução. O tradutor de textos é um profissional. Sem sermos profissionalmente um tradutor e se ache capaz de exercer a profissão de tradutor, não deveria traduzir nada. Quer dizer sem ter-se dedicado a ela profissionalmente e exclusivamente e toda sua vida. Se você porque acredita saber a língua na qual está lendo o texto e assim o pode traduzir também é ser um farsante. Traduzir um texto não é isso. São comparações com outras traduções, é saber analisar bem o que vai-se escrever de uma língua para outra para não eliminar do texto suas peculiaridades. Assim essa tradução aqui feita por um amador é apenas um esboço e por isso está colocado o original acima e uma minha tradução do texto, tentando facilitar para quem está lendo esse manifesto agora:

        Foucault crê que o poder se combate com o poder e, portanto, os saberes com o saber. Seu próprio trabalho de análise das estruturas do poder que permitiram a formação de determinados saberes é um saber, um conhecimento que com ele pode-se combater estas ciências. (...) A estes resultados científicos temos de opor outras análises contra o que demonstra ser o fortalecimento que sustenta e reforça o atual poder político.  Trata-se de afirmar uma verdade contra outra, de lutar que uma verdade triunfe sobre outra.

          
            Digo que a contestação de verdades é uma das nossas principais práticas revolucionárias que é criar discursos, isto é, a crítica constante das teorias que justificam e promovem as relações de poder. Sempre os primeiros enfrentamentos surgem de uma indignação diante de injustiças que geram atos injustos e depois um discurso crítico da prática e do discurso que provocaram as injustiças e indignação.
            Porque é importante que os anarcofoucaultianos gerem pesquisas científicas, filosóficas, artísticas sem relações de poder no ato de construí-las e assim produzirem conhecimentos libertários, isto é, que promovam relações sem poder para criar uma democracia libertária plena na forma e conteúdo. A crítica sistemática das relações de poder e seus discursos devem ser constantes. Criemos nossas instituições e nossas pesquisas, artigos, revistas. Tudo para o anarcofoucaultiano deve ser auto, isto é, de si para si sendo o mestre de si mesmo. Se quiserem, depois se submetam e consigam diplomas para exercer essa ou aquela profissão. Mas o conhecimento real só pode ser adquirido de forma autodidata, ou seja, quando você resolve ler, estudar, pesquisar. Antes disso só existe a farsa do professor e seu aluno: o professor finge que ensina e o aluno finge que aprende. A base de uma sugestão de educação libertária é o encontro de duas ou mais pessoas que querem aprender juntas trocando experiências. O que se deve estimular é esse encontro em um ambiente de liberdade em que cada um escolhe o que gosta de aprender.  

            4 – O apoio mútuo e a ação direta.

            Você pode ser um pesquisador e um militante sozinho. Mas, se o quiser, una forças e crie uma organização sem relações de poder com outros que são anarcofoucaultianos, isto é, que leram e se identificam com o que está escrito nesse manifesto.
            Sugiro então que criemos centros de experiência e pesquisas de relações sem poder para criar uma vida não fascista. 
            Sugiro experimentarmos, quem assim o quiser, os seguintes possíveis projetos a partir dessas sugestões a serem confirmados na prática:

            Privilegiar o aqui e agora. Efetuar ações que tenham, para você e companheiros, agir para mudar também sua vida no dia a dia. Esse procedimento é um dos aspectos da ação direta. Se unir com outros anarcofoucaultianos, que é o apoio mútuo, para praticar a ação direta. Isso quer dizer criar uma malha sem relações de poder. A revolução, se ainda gostam desse nome, está aí.
            Uma das sugestões aqui colocadas é estudar como detalhes o funcionamento do capitalismo para diagnosticar suas brechas e agir para se beneficiar, absolutamente de acordo com as leis vigentes, dentro da ética anarcofoucaultiana, no aqui e agora. Não é estratégico de forma alguma ficar enfrentando o sistema de repressão do fascismo travestido de democracia.  Só as brechas possíveis e de acordo com suas próprias leis podem ser uma estratégia eficiente para modificar o que nos indigna. Afinal, não é com o veneno da cobra que se faz o antídoto? O anarcofoucaultismo deve ser, portanto, também um instrumento de melhorar sua vida com o micro-enfrentamento do capitalismo no aqui e agora. Não deve ser só sonhar como um futuro radiante. É mudar sua realidade também no presente. O anarquismo é uma caixa de ferramentas para você com o apoio mútuo e com a ação direta, viver melhor no aqui e agora, mesmo em sociedades capitalistas. Perceber que associações de pessoas com relações sem poder podem ser mais eficientes do que relações com poder no aqui e agora.
            O apoio mútuo é quando o anarcofoucaultiano cuida de si e do outro. É uma associação de anarquistas para a prática do anarquismo foucaultiano. E é mudar o mundo no presente, aqui e agora, de forma libertária. Que quer dizer que somos honestos, estóicos e nos relacionamos sempre em relações sem poder. Deixe a desonestidade para o capitalista e seus representantes.
            E o que atrapalha o exercício dessa prática? O que vamos aqui chamar de capitalista sem capital. É aquele que vem destruir qualquer organização ou um grupo de pessoas. Ele faz isso para tomar só para ele o que for possível arrecadar. Ele boicota e assim destrói todos que ele consegue se aproximar porque só lhe interessa poder e dinheiro. Sobreviver com o seu trabalho e viver dele é o que o anarquista faz, mas focar obsessivamente em amealhar dinheiro sem nenhum limite para atingir esse objetivo é o que define o capitalista com ou sem capital.
            O capitalista não é só resultado de uma economia, o capitalista é uma maneira de ser. É um comportamento. É uma filosofia de vida. O capitalista sem capital visa apenas conseguir capital para si e poder. Quem quiser fazer surgir uma ação libertária deve ter a habilidade para saber neutralizar o capitalista sem capital que visa apenas na sua vida ter capital e poder para dominando o outro o explorar para criar e aumentar seu capital.  
            Vamos compreender como esse comportamento ocorre. Em primeiro lugar compreendam que ganhar dinheiro para sobreviver de seu trabalho não é ser nem capitalista nem fascista. Precisamos ganhar dinheiro para sobreviver em uma sociedade capitalista. Mas isto não faz de você um capitalista. Quando você consegue ter renda do seu trabalho para sobreviver de forma confortável não é nenhum crime. Quer dizer, o capital não precisa ser o mestre de si mesmo e a sua meta de vida para dominar e explorar os outros e se envaidecer porque ficou rico. Quer dizer ter poder, visibilidade e fama porque tem capital acumulado. A diferença dessa filosofia de vida do anarcofoucaultiano é que ele visa uma vida sem relações de poder. Ele quer só viver e não dominar o outro nem o explorar exercendo o poder. Você para ser feliz não precisa ser da “alta” sociedade, nem famoso, invejado, superior a ninguém. Viva, crie se quiser, trabalhe e faça o que gosta. Isso é que traz alegria e felicidade. Quando você sabe que não é canalha, que não explora os outros nem os persegue, que é contra as injustiças com os seres humanos você se sente muito feliz porque é honesto, anarquista e mestre de si mesmo. Você tem orgulho de si mesmo, se ama devido a isto.  O resto é uma falsa felicidade. Riqueza e poder excessivos e viver para isso é uma pobreza imensa que só vai lhe trazer frustrações porque você ficou escravo do capital e do poder. Você talvez nem precise ter tudo que tem. Se tem o que lhe dá algum conforto, de acordo com o que lhe faz feliz, precisa saber quando vai parar de acumular capital e poder. Em uma relação sem poder você quer se relacionar com os outros com um grande respeito mútuo pelas liberdades e peculiaridades de ambos e isso, experimente, dá um imenso prazer. 
            Assim sendo sugiro que fundemos centros de experiências sem relações de poder, ou seja, que visam mudar as microfísicas do poder.  Esses centros, com seus estudos e pesquisas, são um laboratório para criar relações sem poder. Esse laboratório deve ter sede mantida pelos seus membros e serem registradas oficialmente no país que atuam. Sugiro que os anarcofoucaultianos pedagogos experimentem criar escolas sem relações de poder que devem se estender até a universidade. Sugiro que também devem associar anarcofoucaultianos para enfrentar, através do apoio mútuo e da ação direta, meios de sobrevivência em sociedades capitalistas. Não é só mudar o mundo, mas mudar o mundo através do anarquismo e/ou anarcofoucaultismo, mudando também sua vida no aqui e agora. Por isso a honestidade dos anarcofoucaultianos deve ser, insisto, o primeiro princípio sem o qual nada será construído.
            Sugiro que é preciso se criar uma malha com micro-ações econômicas e micro-ações antipoder. E essa malha deve ser internacional respeitando as peculiaridades de cada povo e país. Você não deve julgar ninguém porque você nem é Deus nem amo de ninguém. O poder, quase sempre, pode consumir o próprio poderoso. A lenda do rei Midas é um mito grego que ilustra muito bem a realidade de muitos capitalistas escravos da mentalidade capitalista.    
            Não se iluda. O maior prazer que existe é se ter confiança e orgulho de si mesmo. Quem nunca roubou, nunca matou, nunca explorou, torturou, oprimiu nem humilhou ou outros é profundamente feliz porque tem o maior dos orgulhos, que é o orgulho de si mesmo. Se fizer o contrário, por mais que se auto-engane e se justifique é um desgraçado e infeliz para todo o sempre, mesmo depois de morrer, porque entra na história, mesmo se não ficou famoso por seu fascismo ou roubo, na sua micro-história da memória dos que conviveram com ele, como um fascista psicopata ridículo e idiota. Você gostaria de ser ou ter sido um Hitler, Mussolini ou Stalin ou filhos e outros parentes deles? Para essas pessoas e seus descendentes só restou o ódio e horror. Portanto, no meu entender, esse é o caminho, para mudando a si mesmo, mudar o mundo.
            Na vida um das coisas mais importantes é saber com quem viver e se afastar de todo tipo de fascista porque a nossa felicidade depende muito disso. Mas tenha cuidado porque esse fascista pode ser você mesmo... Ser anarquista é se recusar a ser fascista. Não há outra opção.
            O anarcofoucaultismo é também um estilo de vida. Um caminho para a estética da existência. Criar, para você mesmo, sua vida como uma obra de arte da qual você se orgulha e não ser apenas mais um retrato de Dorian Gray.
            Resumidamente é o que sugiro que façamos:
            1 – A crítica fundamentada contra todas as formas de relações de poder. Apoiar a todos que lutam pacificamente e de acordo com as leis vigentes para se libertar de relações de poder.
            2 – Experimentar e criar relações sem poder em todas as instâncias. Fundar organizações sem poder. Com esses dois instrumentos políticos você estará mudando e eliminando o fascismo de todos os tipos da face da terra. O número de pessoas anarquistas praticando o anarquismo, sem dizer o nome, é muito grande. 
            3 – Criar grupos e organizações anarquistas para divulgar essa maneira de viver e de mudar o mundo.
           4 - Estudar o capitalismo e descobrir e aproveitar suas brechas para, no aqui e agora, beneficiar as pessoas que praticam relações sem poder.
           
            Quem quer unir o pensamento de Foucault e o anarquismo sugiro que leia, inicialmente, esses textos emergenciais de Foucault que contribuíram com o anarquismo:
            1- O anti-Édipo: uma Introdução a uma vida não fascista. (Prefácio à edição americana de O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Foi retomado em Dits et êcrits, de Foucault (Gallimard). O título é da redação do Magazine Litteraire, onde foi publicado pela primeira vez em francês. Trad. Fernando José Fagundes Ribeiro).

                Prefácio (Anti-Édipo) em Ditos e Escritos VI página 103 em 2011 pela editora Forence Universitária.

            2 - O Sujeito e o Poder, na página 118, de Ditos e Escritos IX, em 2014, pela editora Forense Universitária.
            3 - Em Defesa da Sociedade.  A aula de 14 de janeiro de 1976. Publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes.
            4 -  As Malhas do Poder, na página 169, de Ditos e Escritos  VIII, em 2012, pela editora Forense Universitária.
            5 – Em A Hermenêutica do Sujeito. A aula de 20 de janeiro de 1982. Publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes. Seguida da Carta nº 50 de Cartas a Lucílio, de Sêneca. Publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Aliás, se deve ler e praticar, com sensatez, todas as Cartas a Lucílio, de Sêneca e outros estóicos, epicuristas e os cínicos.